quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Espaço Morto



Os amigos em pé ao seu redor em um típico círculo social, copos nas mãos, vozes alterando-se algumas vezes, assuntos nem tão importantes e nem tão irrelevantes. Falavam, falavam, ao mesmo tempo ou individualmente, disputavam a audição dos demais. Enquanto isso, ele apenas observava. Revezava o olhar entre o ambiente, as bocas sendo escancaradas para que as palavras escapassem, o próprio copo que se esvaziava mais rápido do que conseguia perceber. Olhava frequentemente para o chão em busca de nada, fugindo de alguma coisa que nem mesmo sabia. Ou no fundo sabia, mas não tinha certeza sobre a vontade de fugir. Abriu a boca e começou a falar por cerca de um minuto e quando acabou percebeu que nenhum havia interrompido o que dizia para escutá-lo, sua voz não alcançou nenhum dos disputados ouvidos. Ninguém nem mesmo percebeu que o haviam ignorado, que o deixaram contar para as paredes uma das coisas mais importantes que vivia no momento, ninguém se importava com o que ele tinha a dizer. 

Ninguém se importava... 

Abaixou a cabeça e encarou a quantidade de bebida que ainda restava no copo, suficiente apenas para cobrir o fundo transparente de um copo de plástico descartável. Tão descartável quanto qualquer palavra que saísse da sua boca, palavra que era muitas vezes reprimida pela própria consciência, mas que de alguma forma se desprendia das cordas da sua garganta visando um pouco de luz, de espaço. Porém quando saía apenas um espaço morto a esperava. Mentia para si mesmo quando pensava estar acostumado com aquilo. Mentia para se proteger. Mentia para que as lágrimas nunca chegassem. Mas, de tempos em tempos, elas chegavam. E ele as escondia dos demais, pois lhes pertenciam. Eram lágrimas de um sofrimento que crescera junto com ele e que ganhava espaço nos seus pensamentos e, frequentemente, tomava as rédeas das emoções e o conduzia para uma dolorosa e incômoda angústia. Das lembranças de vida que tem posse, sempre notou a ausência de alguém que o escutasse verdadeiramente. Alguém que abrisse os ouvidos e a mente, que lesse cada movimento muscular mínimo que fizesse durante a sua fala, que procurasse o lugar para que os olhos dele estivessem focados. Talvez isso fosse uma exigência absurda de se esperar de outro alguém. Talvez. Mas sentia-se no vazio, no vácuo do espaço onde nenhum som se propaga, nenhum som nasce. 

Tentou falar novamente e por um breve instante algumas cabeças se viraram para ele, mas esse momento acabou quando outro começou a dizer algo. Cortou a sua própria fala no meio, sem que ninguém percebesse novamente. Uma frase amputada pairava no ar, mas só ele a via. E ela caía vagarosamente rumo ao chão, rumo à inexistência e lá ficaria e morreria. Morreria como muitas outras... 

Era curioso pensar que as pessoas que o conheciam há mais tempo e que já possuíam certo grau de intimidade e, até mesmo, de amizade eram as que menos se importavam em lhe dar ouvidos. Estranhos o ouviriam com atenção, nada excessivo também, mas escutariam sem interrompê-lo. Talvez fosse por mera educação, por receio de pedirem que alguém se calasse ou estariam mesmo interessados no que ele tivesse a dizer. Então, por que as pessoas mais próximas eram as que aprenderam a ignorá-lo? Não que fosse sempre, pois algumas vezes cediam um pouco dos seus respectivos tempos para que ele fizesse um discurso, uma confissão, um pedido, uma piada. Até mesmo deixá-lo livrar-se de um segredo. Por vezes, sufocava-se de segredos, mas nesse quesito a culpa era dele. Sentia-se bem de ser o único portador de alguns acontecimentos da sua vida, carregando fardos que talvez ficassem pesados em alguns momentos, mas aceitava a condição de carregá-los sozinhos. Talvez haja uma dose de egoísmo da parte dele também ao criticar a surdez seletiva dos amigos dessa forma. Afinal, não suportaria viver sem eles. Sabia que as pessoas eram movidas sempre por algo ao longo da vida, um sonho, um objetivo, uma ambição e, por mais que tentasse fugir do clichê, reconhecia que os amigos que possuía eram o fator que o mantinha em frente, sempre em frente. Outra coisa curiosa que percebia era que, por mais próximo que um amigo fosse, ainda existiriam coisas que só se conta para um outro amigo. Nenhum deveria saber de tudo e o tudo deveria ser dividido entre os demais. Concordava com isso, pois acreditava ser uma questão de equilíbrio e não uma mera falta de confiança. Enfim... 

Desviou-se do cemitério de frases no chão e foi em direção à cozinha, passando pelas pessoas na casa. Abriu a geladeira e encheu o copo. Não voltou dessa vez para o círculo de amigos e ficou sentado no chão encostado na parede, com o copo em mãos e o olhar perdido. E ali ficou enquanto todos riam, conversavam, bebiam, vomitavam, namoravam. Sua ausência foi tão notada quanto a sua presença. E ali ficou, apagando-se meio ao vai-e-vem das pessoas. O tempo ia passando e, aos poucos, seu rosto ficava transparente, seu corpo ia sumindo. 

Alguns segundos depois, alguém esbarrou no copo que estava no chão, derramando o conteúdo. A pessoa procurou o dono do objeto, mas não encontrou, então fingiu não ter acontecido nada e voltou para a festa.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

O Homem Que Lia Estrelas



Numa cidade de sempre noite, viviam milhares de pessoas um tanto quanto diferentes do que se conhece. Até mesmo a própria cidade desvia-se do nosso conceito monótono de normal. Primeiramente, não se sabe onde fica ou quando existiu ou se existiu. Talvez ainda exista. Além disso, um fato curioso, pelo menos para mim, é que a manhã nunca o alcançou esse lugar. A noite, a lua, as estrelas e a escuridão sempre estiveram sobre o mesmo. Os relógios eram uma mera forma de organizam-se, posto que não serviriam para informar as horas do dia da forma que o conhecemos. Para os habitantes isso era o habitual, pois nunca viram ou tiveram outra realidade. Diz-se que ninguém nunca saiu ou chegou nessa cidade, todos sempre estiveram lá. As pessoas que lá vivem também possuem também as suas peculiaridades. Cada um, criança ou adulto, homem ou mulher, é capaz de ver o futuro da própria vida. Até onde podem ver? Por que tem esse “dom”? Confesso que não sei responder. 

Uma cidade onde surpresas não existem, onde cada ação já tem a sua reação minunciosamente conhecida, onde a vida não tem mistérios, onde o futuro não pertence a deuses. Chega a ser confuso entender, pois se conseguem ver o futuro o que eles veem no presente? Ou simplesmente não vivem o presente por estarem sempre de olhos à frente do tempo “real”? Contudo, sempre há um “porém”. Como eu já havia dito, lá sempre é noite e são as estrelas e uma enorme lua as responsáveis pela fonte de luz. O “porém” é que, uma vez por ano, surge uma segunda lua, idêntica a primeira. Nada de mais até então. Entretanto, nesse dia de duas luas ninguém, nem adulto nem criança, nem homem nem mulher, pode ver o futuro. A nossa história acontecerá nesse místico lugar e nesse excêntrico dia. Assim, contarei o que se sabe, sem saber de onde ou porque sei. 

Havia um homem que possuía uma habilidade que ia além do complexo fato de ver adiante. Ela podia ler as estrelas. As estrelas reavivavam o passado, iluminavam o presente e confidenciavam uma espécie de futuro. Mas esse não era precisamente exato, pois uma variável das estrelas é que contam com a imprevisibilidade da natureza humana. Em todos os dias de duas luas, a população formava filas em frente à casa desse homem para que este lhes dissesse o que, naquele único dia, não conseguiam saber sozinhos. Ele não se importava com aquilo, habituara-se, sentia-se útil. E a enorme fila, aos poucos, diminuía após cada leitura do homem. Achava aquelas pessoas relativamente estúpidas, por não aproveitarem esse dia com a imprecisão e o não-conhecimento que lhes era dado. Viver ao menos um dia com o gosto da dúvida e a ansiedade do novo e do imprevisível. Por esse motivo, tal homem não olhava para o próprio futuro há anos, apenas para as estrelas. Confiava nos olhos e demais sentidos para que o guiassem ao longo do tempo. 

Quando a última pessoa da fila foi-se, percebeu que uma estrela ainda não havia lhe contado uma história. Ou seja, alguma pessoa da cidade não o procurara. Escolheu não ler a estrela sem que o dono dessa o pedisse. 

Pouco antes de a segunda lua partir, subiu no morro mais alto da cidade para observar a partida dessa visitante anual. Ali, diante das luzes de todas as casas e sob a luz de todas as estrelas, o homem observava. Uma mão tocou-lhe o ombro e virou-se. Uma mulher desconhecida estava parada, por vezes o encarando e por vezes encarando as luas. Não sabia o que ela pretendia, poderia saber se quisesse. Mas não quis. Por nunca tê-la visto, deduziu que seria a dona da estrela que não fora lida e, consequentemente, alguém que não queria ter conhecimento do futuro. Por alguns segundos, ficaram parados apenas observando ambas as faces e olhares. E, finalmente, ela o beija no exato momento que sobra apenas uma lua flutuando no manto negro do céu. 

Um flash de luz e visões invade a mente da garota que assiste, involuntariamente, um futuro que a pertencia. Um futuro que lhes pertencia. Ela viu sua vida ao lado dele. 

Um raio de sol separa o beijo do casal e, dessa vez, as visões invadem o cérebro do homem. Depois de um longo tempo sem olhar para depois do presente, ele viu um futuro que o pertencia. Um futuro que apenas o pertencia.

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Simplesmente, paz



O alarme do celular o fez abrir os olhos lentamente, sem compromisso com o novo dia. Deixou a música tocando por mais alguns minutos, apreciando a calma que ela lhe passava. Sempre escolhia toques mais tranquilos como despertador e dessa vez Guaranteed abriu sua manhã. O apartamento estava um tanto quanto bagunçado e empoeirado, o que geralmente acontecia quando estava sozinho. Ficou deitado olhando o teto, conferiu as horas no celular e percebeu que havia recebido uma mensagem de “boa noite” de um dos seus amigos, mas só a tinha visto naquele momento. Simplesmente, sorriu. Levantou e ligou seu computador, mas dessa vez sem interesse algum. Conferiu tudo o que precisava e o desligou alguns minutos depois. Sentia-se envolto por uma paz que há muito não lhe fazia companhia. Não entendia bem qual o motivo, talvez porque todos ao seu redor estavam bem, familiares, amigos, colegas. Ou talvez era ele quem estivesse bem consigo mesmo. Não importava, estava realmente em paz. Foi até o guarda-roupa e pegou um livro que há tempos o comprara, mas ainda não havia lido. Deitou novamente e começou a leitura. Raramente ocupava-se apenas com uma tarefa, assim, também trocava mensagens com os amigos meio a história fictícia que iniciara. Era uma forma de fazer parte do dia deles e deixar com que compartilhassem do seu dia. Na maioria das vezes, não falavam nada de muito importante, simplesmente bobagens, piadas, trocadilhos. Amava seus amigos, mesmo que não conseguisse expressar como sempre quis, mas acreditava que eles sabiam. E sabiam. 

A hora do almoço passou sem que percebesse e não teve ânimo de ir ao restaurante, talvez por não querer sair da tranquilidade em que estava ou talvez por ainda estar cheio com o hambúrguer que comera de madrugada com alguns amigos. Decidiu por fazer uma faxina no apartamento. Arrastou alguns móveis da sala, ligou o aspirador e começou a desempoeirar o lugar. O barulho que o objeto fazia não superava a música que derramava dos seus fones, caindo diretamente dentro dos ouvidos, dentro da mente e talvez até mesmo dentro da alma. De início, não percebeu que estava sorrindo e quando notou sentiu-se um pouco bobo, mas não se desfez do sorriso. Chegando ao quarto, arrumou todos os livros, papéis, dvds antes da limpeza. Surpreendia-se por ainda não estar careca, levando em consideração a quantidade do seu cabelo que havia no chão. Mas o que mais lhe chamou a atenção não foi o próprio cabelo e sim os longos fios castanhos claro que estava sobre os travesseiros e lençóis. E mais uma vez o riso bobo estampou-se na cara. Algumas noites atrás, dormira com uma bela garota, simpática, alegre e divertida. Somente os dois sabiam a respeito da noite que compartilharam. Ele raramente falava sobre sua vida pessoal, ela concordava e, mesmo não o conhecendo muito bem, compreendia-o. Talvez esse ocorrido também contribuísse para o estado de espírito em que ele se encontrava. Trocou a roupa de cama, dirigiu-se até à cozinha para um lanche e depois deitou-se para assistir um filme. 

Um dia como outro qualquer. Talvez. Mas sentia o oposto. E sentia-se bem, sentia-se cheio, sentia-se leve. Sentia-se simplesmente em paz.

quinta-feira, 5 de julho de 2012

A Caixa de Pandora



Colocou o pó de café na água já borbulhando. Enquanto a água escurecia, lavou uma xícara, preparou uma torrada e sentou-se. A música da cidade enchia o pequeno apartamento. A cozinha, como sempre, bagunçada e com um cheiro de podridão. Não se importava com isso, adaptara-se. Observava as moscas pousando sobre os talheres, mas a mente não estava ali. Nunca esteve. Estava molhada de suor, pois teve mais uma das noites de insônia que costumava ter. O sono fugia dela enquanto os pensamentos e lembranças fortes e nauseantes a tomavam. Não eram recentes. Insistiam em conviver com ela há anos, e isso a tornava a mulher que era. 

Cresceu em uma família pequena e simples, assim como a sua cidade. Amava seus pais e sua irmã. Era uma boa garota, sempre foi. Muito amigável e sorridente com todos. Talvez fosse isso! Não saberia. No entanto, hoje vivia em uma metrópole, na tentativa de deixar para trás aquilo que lhe marcou a infância e a vida. 

Lembrava-se que tudo ocorrera no dia do aniversário de seu pai. Preparavam uma festa surpresa pela primeira vez. Ela estava com 11 anos nesse dia. Estavam ansiosas com a chegada dele, conferindo se nada estava faltando enquanto riam-se de imaginar a reação do homem da casa. Mas esqueceram das velas! Por que se esqueceram disso? Se alguma delas colocasse as velas no carrinho de compras, tudo teria sido diferente. Mas não colocaram. A garota anunciou que iria comprá-las e voltaria em um instante. Correu para a porta da frente e enquanto a fechava deu um largo sorriso para a mãe e a irmã. Havia uma mercearia a dois quarteirões de sua casa. A rua já estava deserta, o que era normal para o horário, assim, acelerou um pouco o passo, tanto por um pouco de medo quanto por empolgação. Chegou à mercearia, foi para a prateleira de festas, pegou as velas e foi para o caixa. Praticamente sem fila, apenas um homem que já estava pagando. Na sua vez, cumprimentou alegremente o homem do caixa e mostrou as velas que tinham esquecido de comprar mais cedo. Voltando para casa, ficou observando os pequenos detalhes brilhantes na cera branca e azul. Distraiu-se tanto que não percebeu que um homem parou na sua frente. Era o homem da fila. Assustou-se de imediato e congelou com coração disparado. 

- Oi garotinha. É o seu aniversário? 

Não conseguia responder. Não queria conversar com ele. A estavam esperando em casa! 

- N-n-não. 

- Não fique com medo de mim. – deu uma risada e um passo a frente – Posso ver as velinhas? 

Antes que pudesse responder ou, até mesmo, pensar, ele deu mais um passo e colocou a mão sobre a boca da menina e a ergueu no ar. A carregou para fora da rua principal, entrando em um pequeno campo de futebol cercado e também deserto. Ela tentava gritar e se contorcia entre os braços do homem. Chorava como nunca havia chorado. Não sabia porque ele fazia aquilo. O que ele queria? Pra onde a estava levando? Ela não tinha mais que alguns trocados no bolso. Mas não era o dinheiro que ele queria. Era simplesmente ela. A deitou na grama sem tirar a mão da sua boca e sentou-se sobre ela pra controlar sua agitação. Como chorava! Começou a rasgar suas roupas e a deixou completamente nua sobre a grama do campo. A menina ainda segurava as velas, mas já quebradas entre os dedos devido à força com que as apertava. Os gritos não venciam a forte mão do homem, segurando-os. Impedindo cada grito de ser livre. Impedindo a garota de ser livre. Ele levou a outra mão ao zíper da própria calça e começou a abrir. A partir desse instante a garota não abriu mais os olhos. E o homem, sem um resquício de piedade, a abusava. Rasgava sua alegria, matava uma parte dela, uma parte que nem mesmo a garota conhecia bem. A fazia sentir coisas tão ruins que nem era possível que expressasse. Em determinado momento, parou de se contorcer e de resistir. Esperava que tudo acabasse, mas esperava longe do campo, longe da cidade, longe. Desmaiou. 

Acordou, vestida, na sua casa, cercada pela família e por alguns policiais. Ouvia uma agitação na porta da sua casa. Os vizinhos estavam todos na porta querendo saber o que havia acontecido e tentando ajudar como pudessem. A menina não entendia muito bem o que havia acontecido ou se foi tudo real. Quando tudo lhe voltou à mente, sentiu-se suja e envolvida por um emaranhado de sentimentos tão cruéis, que sentia sua alma ser apertada, como se fossem os braços do homem. 

Passaram-se 15 anos desde então. Os mesmos sentimentos ainda a envolviam. 

Levantou, pegou o café e serviu-se. Após acabar de beber, dirigiu-se ao quarto e deitou-se ao lado do rapaz que estava na cama. O conhecera no dia anterior em uma livraria e passaram a tarde juntos. Gostou do jeito calmo e simpático dele. Com o cair da noite, decidiram dormir em seu apartamento, mas nada além aconteceu. Ela apenas disse que não estava pronta. Ele lhe deu um beijo no rosto, sorriu e abraçou. Dormiram com esse mesmo abraço. Agora, ela lhe deu um beijo no rosto, o acordou e sussurrou em seu ouvido: 

- Estou pronta, mas terá que me prometer apenas uma coisa. 

Após ouvir o que ela disse, hesitou um pouco, mas concordou sem entender o porquê. E após todos esses anos, ela se entregou a um homem e foi amada de uma forma que nunca havia conhecido. Ele foi carinhoso com ela durante cada segundo até que essa nova experiência terminasse. 

Minutos depois ele saiu do apartamento. Olhou para ela do corredor com um olhar triste, mas compreensivo. E cumpriu a promessa que lhe foi pedida: a de nunca mais se encontrarem. A história deles seria aquela, de apenas um dia. Ambos ficariam com aquele momento, em que tudo foi perfeito, e parariam por aí. 

De volta ao quarto, abriu a gaveta e pegou pedaços quebrados de velas. Os jogou fora. Todos os sentimentos cruéis estavam agora presos fora dela, bem longe dela. Mas um sentimento novo agora ficou trancado junto do seu peito. Sentia a companhia da esperança.

sexta-feira, 16 de março de 2012

Dia!


- Corre Quincas! – gritou Bié enquanto via que o amigo ainda estava atravessando o arame farpado, rasgando ainda mais a camisa. 

Um segundo depois, estavam lado a lado de novo. Com suas canecas de alumínio nas mãos, andavam de passo ligeiro sobre a grama e os pés sumiam sob a névoa da manhã. As cabeças dos bois ao redor os seguiam, observando a pressa dos garotos, e o galo, por vezes, acordava as redondezas e quebrava o ar gelado do lugar com seu canto imponente. Pularam pra estradinha que cortava a fazenda. O mato crescia só no meio, enquanto as laterais não tinham mais vida com o sempre pisar das rodas da carroça e dos cavalos. Cada um corria de um lado, meio que competindo, mas sempre cuidadoso de não deixar o outro pra trás. Chegaram ao curral, onde o João das Graças tirava o leite das vacas, sentado no seu banquinho de madeira de um pé só. O rádio, sempre ligado nessas horas, fazia companhia pra ele, com as notícias da cidade e a missa do Padre Manuel. Quando viu os meninos se chegando, abriu um sorriso aberto. Uns dentes já lhe faltavam, mas a alegria sobrava demais. 

- Dia, mininus! Caíram da cama pra de tá tão cedo qui no curral? 

- Dia, João! – falaram juntos e estenderam as canecas sem mais nenhuma palavra, apenas deram de volta um sorriso, cada um. 

O vaqueiro pegou as duas canecas com uma das mãos, levou pra debaixo do peito da vaca e, com todo o movimento preciso de ordenhar, encheu uma de cada vez. Entregou-as aos garotos, que já as levaram a boca. Bebiam numa velocidade que nem a garganta acompanhava, fazendo escorrer um pouco do leite pelo queixo e cair na roupa suja. Quando acabaram, abriram a boca em satisfação e em busca de fôlego. Deixaram seus copinhos de alumínio ali e correram. 

- Eita diacho! Pode levar essas caneca do cêis! Vô levar não! – João das Graças gritava. Mas foi em vão. 

Quincas e Bié apenas riram e iam deixando a voz braba do vaqueiro pra trás. Foram em direção ao riacho, que descia ali perto. Mesmo com o frio da manhã, o sol já os estimulava a entrar na água. Deixaram os calções, sapatos e camisas na areia da beirada e entraram num pulo. Adoravam aquela curva do rio, ali não tinha perigo de pedra e a água era calma. Os dedos do pé enterravam na areia fina do fundo e fechavam-se, apreendendo parte dela. Nos cantos mais rasos, tentavam pegar os peixinhos com as mãos. Quincas era melhor nisso e sempre que pegava mais de um, dividia com o Bié. Não os matavam, só os sentiam nadando na palma das mãos. Era uma sensação muito boa. Logo depois, os peixes estariam de volta ao riacho. Ficaram ali por um tempo, até a fome indicar que já era hora do almoço. Rumaram pra casa, inicialmente foram correndo sem as roupas até secarem, depois pararam para se vestirem e correram de novo. Criança tem uma pressa pra fazer tudo, vive numa correria, uma espécie de pressa de viver. 

Na cozinha, o almoço já cheirava. O fogão de lenha ficava com fogo baixo pra não deixar a comida esfriar. A mãe do Bié serviu o prato dos dois. Quincas não era parente de ninguém da casa, mas foi ali criado desde que sua mãe tinha falecido. As mães dos dois eram por demais amigas também. Então os dois meninos eram irmãos, mas irmãos de nascença separada. Com os pratos nas mãos, sentaram-se na varanda e ali comiam e proseavam sobre o que fariam antes que o dia terminasse. A comida era simples, mas era muito gostosa. A farinha, o arroz, o feijão, a carne de panela, tudo do mais simples e do mais saboroso. Depois da barriga cheia, deitaram nas redes e ali ficaram esperando a digestão. Com o som dos pássaros ao redor, cochilaram. 

Naquela mesma tarde, foram para a casa da Dona Terezinha porque era dia de quitanda novinha. Chegaram de mansinho na cozinha e, enquanto ela tirava mais uma fornada, cada um pegou um pão bem quentinho e saiu correndo. A mulher gritava, xingava e os amaldiçoava. Mas ela era igual ao vaqueiro João. Fingia que brigava com os meninos e eles fingiam que acreditavam que era briga de verdade. Todos ali nas redondezas amavam demais os garotos e suas brincadeiras. Andavam sempre juntos e nunca se ouviu história de briga entre eles. 

Bié correu tanto que acabou deixando o chinelo para trás, mas na emoção da brincadeira não quis voltar pra buscar. Sentaram na beira da estradinha para comer os pães. O sol, já bem alto, castigava a pele branca de Bié e a pele escura de Quincas, mas não pareceram se importar. Ainda riam enquanto mastigavam, por vezes até gargalhavam só de olhar um para o outro. Quando acabaram de comer, ficaram sentados por mais um tempo sem falar nada, olhando para o pasto a frente deles. 

- Bora Bié? 

- Vamo sim, Quincas. 

Voltaram para a casa, cada um de um lado da estradinha, separados somente pelo mato que crescia no meio.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Ela


Fechou a última mala e correu os olhos pelo quarto. Tudo já estava guardado para a mudança. Sentou-se na cama e ficou observando todos os móveis e roupas que preencheram seu quarto por alguns anos. As memórias caminhavam na sua frente e um nó apertava sua garganta. Era o seu último dia naquela cidade e estava pronto para ir. Mas antes, tinha um assunto a tratar. Pegou um envelope na mesa e saiu. 

Desceu as escadas e saiu do prédio. A rua estava com a movimentação banal que sempre gostou. Cruzou com vizinhos passeando com os cachorros, com uma mulher saindo da padaria e passou na frente do restaurante que por muito tempo almoçou. As cadeiras estavam por cima das mesas enquanto a água lavava marcas de pés e comidas derrubadas. Descia a rua com o envelope nas mãos suadas. Não estava nervoso ou confuso, o que sentia misturava-se com todos os demais sentimentos. Mas queria fazer o que estava indo fazer e disso tinha certeza. O caminho não era longo, mas passou tantas vezes por ali que pareceu que cada passo não era do presente. Cada passo representava outro dia que passara por ali e a história de cada um deles. As companhias, os assuntos conversados, os tropeções inevitáveis nas rachaduras, as chuvas e os dias de sol. E assim os anos iam passando pela sua cabeça, enquanto que apenas alguns minutos se passavam fora dela. Virou em uma esquina e logo mais virou novamente. Chegara à rua que queria. Andou mais um pouco e chegou ao destino. De frente para a casa, respirou fundo e tocou a campainha. Ao apertar o pequeno botão o som encheu a residência e o coração dele pareceu acelerar. Apertou o envelope como se tivesse dúvida de que estava ali. Pela janela, um rosto surgiu e depois de reconhecer o garoto desapareceu por trás das cortinas. A porta se abriu e ela saiu. Caminhava pelo jardim em direção ao portão. Mas não caminhava de uma forma simples, era uma maneira divertida de andar, que não conseguiria explicar. Para ele aquilo era normal, pois a conhecia há anos. De frente um para o outro, ela abriu o portão e sorriu, convidando-o a entrar. Ambos sabiam que era bem provável que fosse a última vez que ele entraria ali, mas nada disseram. 

Não entraram na casa, pois o que ele tinha de fazer era breve. Levantou a mão e lhe entregou o envelope. Por alguns segundos ela não soube do que se tratava. Milhares de pensamentos podem tê-la bombardeado, mas só teria certeza de qual era o certo quando abrisse o papel. Pegou o que lhe era entregue e abriu. Havia uma fotografia envolvida por uma carta. Ela olhou para a imagem e mergulhou num lago de memórias e reflexões. Se outra pessoa olhasse para o retrato não veria nada de especial, mas é assim que funciona. Por mais que se tente explicar uma fotografia, somente aqueles a quem ela pertence sabem o quão longe a mente é acordada. O quanto está escrito por entre àquela confusão de tinta. Ela permanecia muda. Olhou para a carta e depois para o rosto dele. Os olhos dele diziam: “Leia!”, mas ela não suportaria fazê-lo na frente dele e tinha certeza disso. Então, a garota limitou-se a dizer: “Não vou ler agora não”. Ele já esperava por aquilo e simplesmente sorriu. O que ali estava escrito pertencia aos dois e somente a eles. Somente os olhos dela saberiam como ler as palavras dele. Ele a escreveu com as lembranças dela na sua vida, assim a carta era feita com uma mistura de sentimentos de ambos. As palavras não conseguiriam dizer tudo, mas não precisavam, pois era ela quem iria ler e também era ela quem saberia ultrapassar as simples palavras ali gravadas. Era ela. 

Abraçaram-se como se fosse o último abraço que dariam e despediram-se. Saiu para a rua, deu mais uma olhada para o rosto da garota e seguiu em frente. Passando pela última vez por aquela rua. A dúvida de quando se veriam de novo foi a sua companheira no caminho de volta.

sábado, 14 de janeiro de 2012

Guardanapos na mesa de um bar


Noite de sábado e o bar estava lotado, nada de anormal. A música ao vivo competia com as vozes sóbrias e alteradas do local, além do sempre presente som de algo se quebrando. Os garçons costuravam por entre as mesas levando as cervejas geladas e recolhendo os cascos vazios, num ritmo apressado e quase dançante. Os tira-gostos temperavam o ar, enchendo as bocas de água e, os estômagos de desejo. 

Entretanto, a mesa deles não estava na parte interna do bar, mas sim na calçada, próxima ao pulsar da rua. A noite não estava muito quente, mas a temperatura do lado de fora era a ideal. Eram quatro amigos, conversando, bebendo e rindo. Ao primeiro olhar, passavam a impressão de serem muito diferentes entre si, mas posteriormente vinha a certeza: eram muito diferentes entre si. O que se sentava voltado para a rua usava óculos, vestia-se com um terno preto e tinha uma cara um pouco mais séria. Entretanto era o que mais ria na mesa. Todos estavam rindo bastante, mas este parecia quase se mijar de tanto gargalhar. À esquerda do homem de óculos estava um com um estilo mais jovem. Era mais musculoso, com tatuagens ilustrando os braços, e tinha a cabeça raspada. Parecia já ter perdido para o álcool a noção da força e do espaço, se é que algum dia a teve. Caiu umas três vezes da cadeira, derrubou 2 garrafas e parecia espancar os demais quando fazia algumas brincadeiras típicas que, do ponto de vista dele, exigiam contato físico. À direita do homem de óculos estava um homem mais alto e mais magro com uma camiseta branca com um cogumelo verde do Mário de supernintendo. Enquanto bebia, fazia cada vez mais citações de jogos ou filmes “nerds”. Por fim, o homem de costas para a rua era bastante curioso. Não era baixo nem alto, nem gordo e nem magro, nem muito forte nem muito fraco. Não possuía uma característica física que lhe chamasse a atenção, mas era cheio de manias. Sempre colocava a nova garrafa de cerveja que chegava por cima do anel de água da anterior, folheava o cardápio várias vezes e observava o interior do bar procurando... nada, apenas gostava de observar. 

Estavam ali há 2 horas. Os assuntos que conversavam nada tinham de especiais, casualidades e dia-a-dia apenas. Conversavam sobre nada com nada. Mas como viam-se apenas nos fins de semana, cada um tinha a sua hora de ser o narrador na mesa. Não que tivesse uma ordem, mas quando um iniciava a narração os outros o ouviam com total atenção. A maioria das histórias ou estórias contadas terminava em gargalhadas com cerveja saindo pelo nariz. E outras deixavam todos revoltados, provavelmente alguma reclamação de algo que ocorreu no trabalho. Não é muito fácil explicar o que faziam ali naquela mesa. Uma forma objetiva e subjetiva de resposta seria dizer que eles simplesmente estavam sendo amigos. Mas a menor das preocupações deles era tentar entender o que estavam fazendo ali, simplesmente estavam vivendo suas vidas. Ou melhor, compartilhando suas vidas. 

Conversavam, bebiam, conversavam, riam, brigavam, conversavam mais, abraçavam-se. Os assuntos pareciam não ter fim. Ou pelo menos, eles não queriam que tivesse. Queriam evitar que o silêncio caísse sobre a mesa, pois muitas vezes ele vinha acompanhado das frases do tipo: “É né! Hora de ir embora” ou “Bora pedir a conta?”. E isso significava que só se veriam na próxima semana, se não houver imprevistos. Mas nessa noite o silêncio demorou a dar as caras e levantaram da mesa quase na hora do sol do domingo aparecer. 

Pediram a conta e quando esta chegou, tentaram fazer a divisão de cabeça, mas viram que estavam bêbados demais pra isso. Pegaram um guardanapo e fizeram os cálculos com um pouco de dificuldade, mas conseguiram. Entregaram a quantia para o garçom. Despediram-se com apertos de mãos e abraços fortes. Três pegaram táxi e “homem observador” foi a pé, pois morava mais perto dali. No meio do caminho percebeu que estava com o papel rabiscado de números na mão. Olhou para ele, sorriu sem saber porquê e o guardou no bolso.