sexta-feira, 16 de março de 2012

Dia!


- Corre Quincas! – gritou Bié enquanto via que o amigo ainda estava atravessando o arame farpado, rasgando ainda mais a camisa. 

Um segundo depois, estavam lado a lado de novo. Com suas canecas de alumínio nas mãos, andavam de passo ligeiro sobre a grama e os pés sumiam sob a névoa da manhã. As cabeças dos bois ao redor os seguiam, observando a pressa dos garotos, e o galo, por vezes, acordava as redondezas e quebrava o ar gelado do lugar com seu canto imponente. Pularam pra estradinha que cortava a fazenda. O mato crescia só no meio, enquanto as laterais não tinham mais vida com o sempre pisar das rodas da carroça e dos cavalos. Cada um corria de um lado, meio que competindo, mas sempre cuidadoso de não deixar o outro pra trás. Chegaram ao curral, onde o João das Graças tirava o leite das vacas, sentado no seu banquinho de madeira de um pé só. O rádio, sempre ligado nessas horas, fazia companhia pra ele, com as notícias da cidade e a missa do Padre Manuel. Quando viu os meninos se chegando, abriu um sorriso aberto. Uns dentes já lhe faltavam, mas a alegria sobrava demais. 

- Dia, mininus! Caíram da cama pra de tá tão cedo qui no curral? 

- Dia, João! – falaram juntos e estenderam as canecas sem mais nenhuma palavra, apenas deram de volta um sorriso, cada um. 

O vaqueiro pegou as duas canecas com uma das mãos, levou pra debaixo do peito da vaca e, com todo o movimento preciso de ordenhar, encheu uma de cada vez. Entregou-as aos garotos, que já as levaram a boca. Bebiam numa velocidade que nem a garganta acompanhava, fazendo escorrer um pouco do leite pelo queixo e cair na roupa suja. Quando acabaram, abriram a boca em satisfação e em busca de fôlego. Deixaram seus copinhos de alumínio ali e correram. 

- Eita diacho! Pode levar essas caneca do cêis! Vô levar não! – João das Graças gritava. Mas foi em vão. 

Quincas e Bié apenas riram e iam deixando a voz braba do vaqueiro pra trás. Foram em direção ao riacho, que descia ali perto. Mesmo com o frio da manhã, o sol já os estimulava a entrar na água. Deixaram os calções, sapatos e camisas na areia da beirada e entraram num pulo. Adoravam aquela curva do rio, ali não tinha perigo de pedra e a água era calma. Os dedos do pé enterravam na areia fina do fundo e fechavam-se, apreendendo parte dela. Nos cantos mais rasos, tentavam pegar os peixinhos com as mãos. Quincas era melhor nisso e sempre que pegava mais de um, dividia com o Bié. Não os matavam, só os sentiam nadando na palma das mãos. Era uma sensação muito boa. Logo depois, os peixes estariam de volta ao riacho. Ficaram ali por um tempo, até a fome indicar que já era hora do almoço. Rumaram pra casa, inicialmente foram correndo sem as roupas até secarem, depois pararam para se vestirem e correram de novo. Criança tem uma pressa pra fazer tudo, vive numa correria, uma espécie de pressa de viver. 

Na cozinha, o almoço já cheirava. O fogão de lenha ficava com fogo baixo pra não deixar a comida esfriar. A mãe do Bié serviu o prato dos dois. Quincas não era parente de ninguém da casa, mas foi ali criado desde que sua mãe tinha falecido. As mães dos dois eram por demais amigas também. Então os dois meninos eram irmãos, mas irmãos de nascença separada. Com os pratos nas mãos, sentaram-se na varanda e ali comiam e proseavam sobre o que fariam antes que o dia terminasse. A comida era simples, mas era muito gostosa. A farinha, o arroz, o feijão, a carne de panela, tudo do mais simples e do mais saboroso. Depois da barriga cheia, deitaram nas redes e ali ficaram esperando a digestão. Com o som dos pássaros ao redor, cochilaram. 

Naquela mesma tarde, foram para a casa da Dona Terezinha porque era dia de quitanda novinha. Chegaram de mansinho na cozinha e, enquanto ela tirava mais uma fornada, cada um pegou um pão bem quentinho e saiu correndo. A mulher gritava, xingava e os amaldiçoava. Mas ela era igual ao vaqueiro João. Fingia que brigava com os meninos e eles fingiam que acreditavam que era briga de verdade. Todos ali nas redondezas amavam demais os garotos e suas brincadeiras. Andavam sempre juntos e nunca se ouviu história de briga entre eles. 

Bié correu tanto que acabou deixando o chinelo para trás, mas na emoção da brincadeira não quis voltar pra buscar. Sentaram na beira da estradinha para comer os pães. O sol, já bem alto, castigava a pele branca de Bié e a pele escura de Quincas, mas não pareceram se importar. Ainda riam enquanto mastigavam, por vezes até gargalhavam só de olhar um para o outro. Quando acabaram de comer, ficaram sentados por mais um tempo sem falar nada, olhando para o pasto a frente deles. 

- Bora Bié? 

- Vamo sim, Quincas. 

Voltaram para a casa, cada um de um lado da estradinha, separados somente pelo mato que crescia no meio.