segunda-feira, 22 de julho de 2013

Carne



A pele fria, úmida, acastanhada e endurecida.

Eu repousava sobre minha eterna cama de aço inoxidável, com o cheiro irritante e corrosivo de formol preenchendo minha casa. Meu rosto imobilizado já não lhes contava nada. Meus olhos muito secos e esbranquiçados para que revelassem um pouco além da carne, um resquício de história, um pedaço de vida. Mas elas estiveram ali. Memórias, amores e sofrimentos já fizeram parte do meu corpo, correram pelas minhas veias e artérias, encheram pulmões, acomodaram-se no cérebro, fundiam-se num só ser. Compunham-me. Contudo, essa história se perdeu, separou-se, deixando uma carne fria e um coração cheio de ar e formol. Tornei-me um desconhecido. Todos que me visitavam nada sabem sobre mim, nem o nome, nem de onde eu era, nem mesmo a causa da minha morte. Apenas me observavam, me analisavam, removiam-me órgãos e os colocavam de volta. Seguravam o meu coração, o mesmo que já pertenceu a alguém em algum momento e agora, sequer pertencia a mim. Fígado, baço, pâncreas também eram colocados em potes, deixando dentro um vazio que se juntava ao vazio da alma que se fora. Fora encontrar as outras que ajudaram a construir a minha. As mãos vivas dos visitantes tocam meu corpo morto, tocam o meu vazio e depois se vão, para que outros façam o mesmo. Hora após hora, dia após dia, ano após ano. Não sei dizer os nomes deles, pois nunca conversaram comigo. Conheço apenas os rostos.

Não possuo mais algo só meu, minha privacidade foi posta de lado pra que me conhecessem por inteiro, sou obrigado a ser exposto, sou literalmente dissecado e cada parte de mim é revelada. Meus visitantes, no entanto têm o direito de se cobrirem, de se esconderem por trás de roupas brancas, luvas, máscaras e óculos. Apenas ficam em pé ao meu lado, enquanto nomeiam cada pedaço de mim.

Deitado sobre a mesa de aço há um corpo e ao lado, também.

Deitado sobre a mesa de aço há uma história e ao lado, também.

Deitado sobre a mesa de aço há um passado já vivido e ao lado, um futuro.

Deitado sobre a mesa de aço está a solidão e o esquecimento e ao lado amizades e coleguismos.

Deitado sobre a mesa de aço há um “ninguém” e ao lado, um alguém.

Deitado sobre a mesa de aço está a morte e ao lado, a vida.

Deitado sobre a mesa de aço é onde sempre estarei e ao lado, vocês.