sábado, 17 de setembro de 2011

Cemitério de deuses


Ela estava na beira do córrego, enchendo algumas vasilhas com água. As montanhas ao longe a observavam, assim como as raras árvores e animais que cercavam o ambiente. O sol, majestoso e cruel, castigava suas costas com o seu fervor. Entretanto, Khamalla adorava ir até aquele lugar. Não era longe da sua aldeia, mas gostava de afastar-se um pouco dos demais para pensar, brincar sozinha com sua imaginação e, frequentemente, rezar. Ali era o seu recanto. Sentou-se na margem, molhando os pés. A água geladinha desenhou um sorriso em seu rosto. Fechou os olhos e colocou os dedos no colar que sua mãe lhe dera. Era feito com lascas de árvores bem vermelhas e algumas pedrinhas pretas. Khamalla o adorava. Sempre que conversava com seus deuses, segurava-o entre os dedos e pedia proteção para todos que amava. 

Não soube quanto tempo passara ali, de olhos fechados. Mas um grito arrepiante a fez levantar bruscamente. O som vinha da direção da aldeia. Correu para ver o que estava acontecendo. Subiu uma pequena montanha, olhou para baixo e viu sua tribo ser atacada por outra, inimiga. Eram dezenas de homens altos, velozes, portando lanças assustadoras e um olhar que pedia por morte. Seus troncos nus estavam pintados com faixas brancas e vermelhas. E o som que lhes saia da boca provocava o terror em todos que o escutavam. Lá de cima, ela procurou sua mãe em meio ao caos de mortes e de dor. Os olhos das duas cruzaram-se imediatamente e nesse instante sua mãe gritou: 

— Khamalla! 

Nunca ouvira seu nome ser pronunciado daquela forma. Era um som cheio de desespero, medo e amor. O rosto da sua mãe estava regado por lágrimas. Um segundo depois, esse mesmo rosto foi atravessado por uma lança, formando-se uma mistura de lágrimas e sangue, que escorria e pingava de forma suave na terra. E a pequena menina acompanhou tudo, de longe, mas o que sentira naquele instante estava bem perto. Estava dentro dela. Sentiu o gosto da morte. Khamalla abaixou-se ao perceber que o assassino de sua mãe procurava a dona do nome gritado. Correu para onde estava antes de tudo começar e escondeu-se atrás de uma enorme pedra barrenta e seca. Ficou ali imóvel, abraçando os joelhos e apertando seu colar com tanta força que um filete de sangue coloriu suas mãos. Pedia por ajuda como nunca pedira antes. 

Quando o sol começou a esconder-se timidamente por trás das montanhas, ela levantou e, de forma cuidadosa, voltou para sua aldeia. O que vira ali, nunca mais sairia da sua mente. Todos mortos. Todos! Caminhava ao lado daqueles que amou um dia, molhava os pés com o sangue ainda quente que cobria a terra. Ali estavam as crianças com quem brincava e todos que cuidavam dela. Eram uma família. Não acreditava no que aconteceu. Pouco mais a frente estava sua mãe, com o rosto desfigurado e voltado para o lugar onde a menina estivera pouco antes. Olhou dentro dos seus olhos mortos e não havia mais nada neles. Não havia medo, não havia preocupações, não havia amor. Sentou-se ao lado dela, afagou-lhe os cabelos e percebeu o quanto estava chorando. Nunca estivera tão só. 

Pouco depois, Khamalla cavou uma pequena cova. Não era funda, mas era o suficiente e o máximo que conseguiria. E ali, nesse pequeno buraco, ela enterrou sua mãe, seu colar, sua fé e seus deuses. Bateu a mão sobre a terra fofa, levantou-se e começou a caminhar, mas sentia as lágrimas voltando e começou a correr para longe de tudo. E corria, sozinha, em direção ao sol.