quinta-feira, 5 de julho de 2012

A Caixa de Pandora



Colocou o pó de café na água já borbulhando. Enquanto a água escurecia, lavou uma xícara, preparou uma torrada e sentou-se. A música da cidade enchia o pequeno apartamento. A cozinha, como sempre, bagunçada e com um cheiro de podridão. Não se importava com isso, adaptara-se. Observava as moscas pousando sobre os talheres, mas a mente não estava ali. Nunca esteve. Estava molhada de suor, pois teve mais uma das noites de insônia que costumava ter. O sono fugia dela enquanto os pensamentos e lembranças fortes e nauseantes a tomavam. Não eram recentes. Insistiam em conviver com ela há anos, e isso a tornava a mulher que era. 

Cresceu em uma família pequena e simples, assim como a sua cidade. Amava seus pais e sua irmã. Era uma boa garota, sempre foi. Muito amigável e sorridente com todos. Talvez fosse isso! Não saberia. No entanto, hoje vivia em uma metrópole, na tentativa de deixar para trás aquilo que lhe marcou a infância e a vida. 

Lembrava-se que tudo ocorrera no dia do aniversário de seu pai. Preparavam uma festa surpresa pela primeira vez. Ela estava com 11 anos nesse dia. Estavam ansiosas com a chegada dele, conferindo se nada estava faltando enquanto riam-se de imaginar a reação do homem da casa. Mas esqueceram das velas! Por que se esqueceram disso? Se alguma delas colocasse as velas no carrinho de compras, tudo teria sido diferente. Mas não colocaram. A garota anunciou que iria comprá-las e voltaria em um instante. Correu para a porta da frente e enquanto a fechava deu um largo sorriso para a mãe e a irmã. Havia uma mercearia a dois quarteirões de sua casa. A rua já estava deserta, o que era normal para o horário, assim, acelerou um pouco o passo, tanto por um pouco de medo quanto por empolgação. Chegou à mercearia, foi para a prateleira de festas, pegou as velas e foi para o caixa. Praticamente sem fila, apenas um homem que já estava pagando. Na sua vez, cumprimentou alegremente o homem do caixa e mostrou as velas que tinham esquecido de comprar mais cedo. Voltando para casa, ficou observando os pequenos detalhes brilhantes na cera branca e azul. Distraiu-se tanto que não percebeu que um homem parou na sua frente. Era o homem da fila. Assustou-se de imediato e congelou com coração disparado. 

- Oi garotinha. É o seu aniversário? 

Não conseguia responder. Não queria conversar com ele. A estavam esperando em casa! 

- N-n-não. 

- Não fique com medo de mim. – deu uma risada e um passo a frente – Posso ver as velinhas? 

Antes que pudesse responder ou, até mesmo, pensar, ele deu mais um passo e colocou a mão sobre a boca da menina e a ergueu no ar. A carregou para fora da rua principal, entrando em um pequeno campo de futebol cercado e também deserto. Ela tentava gritar e se contorcia entre os braços do homem. Chorava como nunca havia chorado. Não sabia porque ele fazia aquilo. O que ele queria? Pra onde a estava levando? Ela não tinha mais que alguns trocados no bolso. Mas não era o dinheiro que ele queria. Era simplesmente ela. A deitou na grama sem tirar a mão da sua boca e sentou-se sobre ela pra controlar sua agitação. Como chorava! Começou a rasgar suas roupas e a deixou completamente nua sobre a grama do campo. A menina ainda segurava as velas, mas já quebradas entre os dedos devido à força com que as apertava. Os gritos não venciam a forte mão do homem, segurando-os. Impedindo cada grito de ser livre. Impedindo a garota de ser livre. Ele levou a outra mão ao zíper da própria calça e começou a abrir. A partir desse instante a garota não abriu mais os olhos. E o homem, sem um resquício de piedade, a abusava. Rasgava sua alegria, matava uma parte dela, uma parte que nem mesmo a garota conhecia bem. A fazia sentir coisas tão ruins que nem era possível que expressasse. Em determinado momento, parou de se contorcer e de resistir. Esperava que tudo acabasse, mas esperava longe do campo, longe da cidade, longe. Desmaiou. 

Acordou, vestida, na sua casa, cercada pela família e por alguns policiais. Ouvia uma agitação na porta da sua casa. Os vizinhos estavam todos na porta querendo saber o que havia acontecido e tentando ajudar como pudessem. A menina não entendia muito bem o que havia acontecido ou se foi tudo real. Quando tudo lhe voltou à mente, sentiu-se suja e envolvida por um emaranhado de sentimentos tão cruéis, que sentia sua alma ser apertada, como se fossem os braços do homem. 

Passaram-se 15 anos desde então. Os mesmos sentimentos ainda a envolviam. 

Levantou, pegou o café e serviu-se. Após acabar de beber, dirigiu-se ao quarto e deitou-se ao lado do rapaz que estava na cama. O conhecera no dia anterior em uma livraria e passaram a tarde juntos. Gostou do jeito calmo e simpático dele. Com o cair da noite, decidiram dormir em seu apartamento, mas nada além aconteceu. Ela apenas disse que não estava pronta. Ele lhe deu um beijo no rosto, sorriu e abraçou. Dormiram com esse mesmo abraço. Agora, ela lhe deu um beijo no rosto, o acordou e sussurrou em seu ouvido: 

- Estou pronta, mas terá que me prometer apenas uma coisa. 

Após ouvir o que ela disse, hesitou um pouco, mas concordou sem entender o porquê. E após todos esses anos, ela se entregou a um homem e foi amada de uma forma que nunca havia conhecido. Ele foi carinhoso com ela durante cada segundo até que essa nova experiência terminasse. 

Minutos depois ele saiu do apartamento. Olhou para ela do corredor com um olhar triste, mas compreensivo. E cumpriu a promessa que lhe foi pedida: a de nunca mais se encontrarem. A história deles seria aquela, de apenas um dia. Ambos ficariam com aquele momento, em que tudo foi perfeito, e parariam por aí. 

De volta ao quarto, abriu a gaveta e pegou pedaços quebrados de velas. Os jogou fora. Todos os sentimentos cruéis estavam agora presos fora dela, bem longe dela. Mas um sentimento novo agora ficou trancado junto do seu peito. Sentia a companhia da esperança.