domingo, 25 de maio de 2014

Me dê sua mão, hoje não voltaremos para casa



Me dê sua mão, hoje não voltaremos para casa...


Hoje iremos a todos os lugares que gostaríamos de ir juntos.

Hoje iremos sair sem destino, atravessar o mundo e voltar num só dia.

Hoje te levarei para jantar em restaurantes sofisticados e barracas de cachorro-quente.

Hoje te derrubarei nas areias de todas as praias porque seu sorriso depois de ficar brava é o mais bonito.

Hoje encontraremos pessoas que falam idiomas que não entendemos e juntos seguraremos nossas risadas.

Hoje vou caminhar ao seu lado em todas as calçadas para que o mundo nos veja.

Hoje vou sentar com você em todas as praças e observar seu rosto enquanto você está distraída com as crianças brincando.

Hoje vou te fazer correr para chegarmos a tempo dos filmes que veremos.

Hoje vou te carregar de surpresa e te jogar dentro do rio, mas pularei logo atrás para receber minha bronca e meus beijos.

Hoje vou te segurar antes de atravessarmos a rua, pois sei que você nunca espera a hora certa.

Hoje vou te contar o pouco que sei de cada lugar e ouvirei o muito que você sabe.

Hoje te comprarei café preto porque é o seu favorito, mesmo que faça careta enquanto toma.

Hoje beberemos uma garrafa de vinho antes de dormirmos sob a lua de cada lugar.

Hoje faremos amor sob o teto de cada país.

Hoje acordarei antes de você porque minha realidade ao seu lado é melhor do que todos os sonhos.

Hoje vamos ficar onde estivermos.

Hoje vamos ficar em todos os lugares.

Hoje não ficaremos em lugar algum.



Me dê sua mão, hoje não voltaremos para casa...

domingo, 26 de janeiro de 2014

Boneca Russa


Os olhos abriram-se quando uma claridade fraca tocou suavemente o seu rosto. E ali ela ficou por mais alguns segundos, minutos, décadas. Sua mente vagava de uma forma tão cosmicamente solitária e obscura que o tempo interno nunca mais se alinhara com o externo. Não sentia-se no espaço em que estava, não sentia-se deslocar uma massa de ar com o seu corpo, fundia-se, evaporava-se, transformava-se em pensamento puro, seco, nunca dantes lapidado. Sentia tudo, mas não entendia o que sentia, vivia em uma constante implosão da alma. Uma alma que jazia quebrada dentro dela e nada podia fazer. Como consertar-se quando é a sua parte mais interna que está quebrada?

Sentou-se na beirada da cama, jogou os cobertores para o lado e revelou um corpo nu, perláceo, suave, delicado. Ela se levantou e abriu a janela, que rangia com o bater da neve contra seu vitral azul celeste, deixando o frio cortá-la por fora. Os flocos de neve chocavam-se contra seu peito, pescoço e rosto, e dali eles roubavam o que lhe restava de calor e deslizavam num rastro de água, desenhando na superfície da sua pele um emaranhado de veias externas, frias e transparentes. Aquilo fazia com que sentisse que estava ali, que estava presente e que aquela era sua realidade. Aquilo pausava seus pensamentos e a acariciava de uma forma fúnebre. Seria essa a sensação de uma morte eminente? Se fosse, era o mais próximo de sentir a vida que ela conseguia chegar. 

Caminhou em direção ao banheiro, sentindo os pés esfriarem até que já não mais os sentia. Assim, flutuava sem preocupar-se em cair, pois nada sentiria com a queda. O frio que inicialmente a trazia a sensação de vida, era o mesmo que tirava o que lhe restava de sensibilidade. Em frente ao espelho não mais se reconhecia. Via um rosto que perdera todos os traços que já tivera, um cabelo vermelho escorria pela testa como sangue, olhos que tentavam imaginar uma nova realidade no reflexo a sua frente. Estava quebrando por fora também. O que a estava destruindo por dentro queria sair e conseguiria, pois suas forças desfaziam-se ao menor contato com o real. O pior de tudo era sentir cada rachadura e trincado internos aumentando até que mais uma camada virasse pó. E sentia. Sentia-se quebrar, mas o conserto não estava ao seu alcance, se é que alguém pudesse alcançá-lo. Encostou-se na parede fria e deslizou as costas até se sentar. Ali, abraçou as pernas na tentativa de se sentir, de se limitar e não mais fundir-se com o seu redor. Não funcionava mais.

Queria chorar, mas nem isso mais lhe obedecia. O choro vinha quando ele mesmo queria e quando ela não o esperava. Aliás, ela sempre o esperava. Suas lágrimas, suas companheiras, traziam mensagens de que tudo estava errado lá dentro. Lágrimas que brotavam das rachaduras e percorriam o seu caminho até encontrar a luz e beijar sua face. Mais uma vez perdia a noção do tempo externo e por horas ficou ali sentada e esqueceu-se da sua linha de pensamentos. Apenas percebeu o próprio cansado e rastejou-se nua até à cama novamente.

Não vivia mais. Não sabia em que estágio estava, mas era algo entre a vida e a morte. Sentia isso. Desejava saber como chegar a algo concreto. Seria a morte tão concreta quanto a vida? Não importava, a questão era que não suportava mais a instabilidade em que se afogava. Seus pulmões aspiravam incertezas, sua mente era um vácuo, seu corpo desistia. Tudo nela estava simplesmente cansado. Estava cansada. Não suportava ser o que era, não suportava estar onde estava. Os olhos pesavam e sua lógica esvaía-se com o passar dos segundos, até que adormecera. Os sonhos eram o único refúgio da sua insensatez atual, pois neles a lógica não elabora suas jogadas e o imaginário e inexplicável simplesmente existem em paz. Estava em paz em seus sonhos.

Os flocos de neve chocavam-se contra seu peito, pescoço e rosto, e dali eles roubavam o que lhe restava de calor e deslizavam num rastro de água, desenhando na superfície da sua pele um emaranhado de veias externas, frias e transparentes.