sexta-feira, 24 de junho de 2011

A Menina Que Segurava o Tempo


Folhas e folhas sobre a sua mesa. O telefone não parava de gritar nem por um segundo. As mensagens chegavam à tela do computador na velocidade da luz. Não sabia mais as horas, mas era tarde, ou cedo. Seu gato, um animal com uma personalidade muito esquisita, diga-se de passagem, a fitava, como de costume. Era madrugada. Seus amigos estavam num bar, comemorando o ócio, enquanto ela o almejava. Tinha que dormir e sabia disso, mas os outros compromissos eram urgentes. Seu cérebro queria escorrer para fora da sua cabeça e dar uma simples deitada na cama, também coberta de papel e pressa. Só uma deitadinha. Ele sabia que merecia por ter passado tantas horas seguidas despejando informações nos seus giros e lobos. Ela, ao invés do repouso, queria tempo para fazer tudo e ficar livre. Desejou que o tempo parasse, mas, como era esperado, isso não aconteceu. Não naquele momento. Finalmente, ao ser vencida por todas as células do corpo, decidiu cair num dos sonos mais profundos que já tivera. 

Acordou com alguém batendo na sua porta. Abriu os olhos contra a sua vontade e procurou pelo relógio meio desorientada. Ele marcava 15 horas. Sentia que tivera um sonho estranho, mas não conseguia se lembrar. Levantou e seguiu o som que quebrou sua mente anestesiada em sonhos. Rodou a chave e abriu a porta. Não havia ninguém. Olhou para os lados. Ninguém. Entretanto, uma caixa sobre seu tapete de “Seja bem-vindo” lhe chamou a atenção. Era branca, com uma fita preta amarrada por cima. Pegou, meio desconfiada, o objeto e o levou para dentro. Nada de cartão, remetente ou qualquer pista da sua origem. Ela ficou encarando a caixa, como se esperasse uma resposta para o que estava acontecendo. Não respirava, não ouvia nada, nenhum movimento na casa, um silêncio absurdo. Criou coragem, removeu a fita e a abriu. Ficou surpresa, pois o tamanho da caixa era muito maior do que o seu conteúdo. Bem no fundo tinha uma pequena ampulheta de areia cinza. A pegou com cuidado, observou-a e percebeu que o orifício entre a parte superior e inferior podia ser fechado ou aberto. Bastava girar como se fosse abrir um pote. Naquele momento, esse orifício estava fechado. Olhou para o fundo da caixa e viu um bilhete. Nele estava escrito “Ao girar, o tempo será seu”. Não entendia absolutamente nada. O que estava acontecendo ali. Quem estava fazendo esse tipo de brincadeira com ela. Será que alguém pensou que ela acreditaria em tal coisa? Provavelmente era uma piada dos seus amigos, criticando sua vida atarefada. Deu uma risada de canto de boca e colocou a ampulheta sobre a mesa. Depois descobriria o autor do presente. 

Saiu de sua casa para almoçar. Caminhou rápido, comeu mais rápido ainda e voltou quase correndo. Continuava cheia de coisas pra fazer num tempo muito curto. Teve uma trégua com seu cérebro, já que lhe deu algumas horas de descanso. Sentou novamente na sua cadeira e afundou em pilhas de papel. Mas não conseguia parar de pensar na ampulheta. O que aquele recado queria dizer? E, afinal, se ela girasse nada aconteceria, pois era uma brincadeira, certo? Para matar esses pensamentos inúteis, foi buscar o objeto. Sem pensar muito, girou. Os pequenos grãos começaram a cair, olhou para os lados, procurando qualquer mudança e nada. Resolveu fechar o orifício novamente. No exato instante que girou percebeu que se gato estava sobre a mesa, passando do lado do vaso e este ia cair. Terminou o giro por reflexo e foi em direção à tragédia eminente. 

... 

Nada. 

O objeto não quebrou. Ele simplesmente desistiu de cair, como se aquilo não fosse do seu agrado. O gato não se movera nem mais um centímetro. O silêncio era tão brutal quanto o olhar da menina para o que estava acontecendo. Se é que aquilo estava acontecendo. Recompôs-se com certo cuidado. Foi em direção ao vaso que estava “caindo”. Tocou, passou a mão por baixo e o encarou. Por mais inacreditável que fosse, ele estava flutuando, preso dentro do ar. Pensou por alguns segundos, abriu a mão e olhou para a ampulheta, agora fechada. Sua areia não se movia, assim como tudo mais a sua volta. Correu em direção à caixa e releu o bilhete: “Ao girar, o tempo será seu”. Não era uma brincadeira. Estava acontecendo. Ela parou o tempo! 

Nas ruas, o cenário estático era o mesmo. Pessoas que estavam correndo, rindo e jogando ficaram congeladas, assim como nuvens e carros. Da mesma forma, estavam os animais. Aves levantando vôo e cães em meio ao latido. Achou tudo aquilo estranhamente maravilhoso, de uma beleza nunca dantes vista, e ela era a única que presenciava. Sentia-se poderosa e singular. Sentia uma picada de medo, mas o êxtase do momento distraía sua mente e seu corpo. Corria por entre as “estátuas” como se fosse uma criança no parque. Por vezes, sentia-se boba com as brincadeiras, mas depois lembrava que ninguém nunca saberá o que ela fazia naquele momento. Foi em direção de uma rua que costumava ser bastante movimentada, escondeu-se atrás de uma árvore próxima, tirou a ampulheta do bolso e girou. Uma explosão de movimento, cores e sons a sua frente. Tudo muito rápido. Girou novamente o objeto e a calma dominava o lugar por completo. Não podia estar mais feliz. 

Com o tempo ainda parado, voltou para casa, sentou-se em sua mesa e terminou todos os compromissos dos próximos meses. E gastou menos do que... nada. Não levou um segundo sequer. Resolveu deixar o tempo correr novamente, afinal, já tinha acabado tudo que tinha que fazer. E fizera até mais do que esperava. Riu e trouxe o movimento do mundo de volta. 

Durante dias ela bancava a rainha do tempo. Usava e abusava da ampulheta. Saía com os amigos todas as vezes, pois nunca mais conhecera o atraso ou a pressa. E foi quando voltava de um desses encontros que aconteceu uma coisa preocupante. O vidro que envolvia a areia estava trincado, e aumentava pouco a pouco de tamanho. Nenhum grão havia saído. Ainda. Colocou o dedo sobre o pequeno orifício que se abria. O que aconteceria se ela deixasse a areia cair? Por curiosidade, removeu o dedo e deixou um único grão pular para fora da sua eterna prisão de vidro e encontrar-se com o mundo que tanto interferiu. No exato momento que encontrou sua liberdade, o dedo cobriu novamente o buraco. Apenas um grão saíra. Tudo que estava no campo de visão da garota desfazia, borrava, girava, quebrava e passava. O tempo corria de uma maneira inimaginável, impossível acompanhar, com olhos humanos, o que acontecia. A picada de medo que sentiu no dia que conheceu a ampulheta tornou-se uma tortura de tão forte. O que estava acontecendo? Para onde o tempo estava indo? O que ela tinha feito? 

A loucura do tempo parou. Ela, ainda impedindo que os demais grãos de areia caíssem, olhou para o lado a procura de mudanças. Sua casa estava bastante empoeirada e uma pilha de correspondências dormia em silêncio aos pés da porta da frente. Pegou a que estava por cima e seu sangue gelou. A data indicava que havia se passado 50 anos. O único grão de areia que deixara sair a fez perder 50 anos de sua vida. Pegou o telefone e ligou para seus pais e amigos. Nenhum deles atendeu. Estava desesperada. Ela queria saber o que aconteceu nesses 50 anos! Um pouco mais tarde ela irá perceber que nunca mais verá seus amigos ou familiares. Encostou-se à parede e deslizou até o chão. Começou a chorar. Não se sentia singular, sentia-se sozinha. 

Descuidou-se por um instante e outros grãos fugiram. Toda a insanidade voltou a passar diante dos seus olhos. Não agüentava aquilo. Quanto tempo irá perder dessa vez? Por que a ampulheta quebrou? Quando tudo voltou ao “normal” o choque foi ainda maior. Ela não estava mais em sua casa. Parecia o mesmo lugar, mas apenas escombros cobriam o chão de tudo ao seu redor. Dessa vez não foram apenas 50 anos. A paisagem aparentava ser de milhares de anos do futuro. E a paisagem não mentia. A garota estava no meio do que, um dia, foi uma cidade cheia de pessoas. Caminhou por horas sem rumo. A cada passo que dava, via apenas a destruição que o tempo era capaz de fazer. A cidade estava morta, as pessoas estavam mortas, ela desejava a morte. 

Abriu a mão e a ampulheta estava lá. A menina segurava aquilo que matara a todos. Todos que amava não estavam mais ali e nunca estarão. Tudo foi passado para trás, como se sua vida apenas tivesse sido folheada. O ódio pelo objeto cresceu a ponto de desistir de seus grãos e dar-lhes a liberdade. Jogou a ampulheta no chão com força. Nova explosão de cores, mas dessa vez não estava diante dos seus olhos. Ela era a explosão, era as cores, era os sons, era o borrado. Deixou-se levar pelo tempo. Não tinha mais nada a perder. O tempo que lhe tirara tudo era o mesmo para quem se entregava. E ela simplesmente foi. Para onde? Para quando? 

Acordou com alguém batendo na sua porta. Abriu os olhos contra a sua vontade e procurou pelo relógio meio desorientada. Ele marcava 15 horas. Sentia que tivera um sonho estranho, mas não conseguia se lembrar.

domingo, 5 de junho de 2011

Os Capitães de Jorge

Abro espaço aqui para colocar um dos trechos que mais me chama a atenção na literatura brasileira. Um parágrafo do livro “Capitães da Areia”, de Jorge Amado, que, a meu ver tange a perfeição e alcança seu leitor de todas as formas, independentemente, de quem o seja. Fato conseguido por poucos. Peço licença ao falecido, mas eternizado, autor.

[...] Desceram para o trapiche. A chuva entrava pelos buracos do teto, a maior parte dos meninos se amontoavam nos cantos onde ainda havia telhado. O Professor tentara acender sua vela, mas o vento parecia brincar com ele, apagava-a de minuto a minuto. Afinal ele desistiu de ler essa noite e ficou peruando um jogo de sete-e-meio que o Gato bancava, ajudado por Boa-Vida, num canto. Moedas no chão, mas nenhum rumor desviava Pirulito das suas orações diante da Virgem e de Santo Antônio. Nestas noites de chuva eles não podiam dormir. De quando em vez a luz de um relâmpago iluminava o trapiche e então se viam as caras magras e sujas dos Capitães da Areia. Muitos deles eram tão crianças que temiam ainda dragões e monstros lendários. Se chegavam para junto dos mais velhos, que apenas sentiam frio e sono. Outros, os negros, ouviram no trovão a voz de Xangô. Para todos estas noites de chuva eram terríveis. Mesmo para o Gato, que tinha uma mulher em cujo seio escondia a jovem cabeça, as noites de temporal eram noites más. Porque nestas noites homens que na cidade não têm onde reclinar a sua cabeça amedrontada, que não têm senão uma cama de solteiro e querem esconder num seio de mulher o seu temor, pagavam para dormir com Dalva e pagavam bem. Assim o Gato ficava no trapiche, bancando jogos com seu baralho marcado, ajudado na roubalheira pelo Boa-Vida. Ficavam todos juntos, inquietos, mas sós todavia, sentindo que lhes faltava algo, não apenas uma cama quente num quarto coberto, mas também doces palavras de mãe ou de irmã que fizessem o temor desaparecer. Ficavam todos amontoados e alguns tiritavam de frio, sob as camisas e calças esmolambadas. Outros tinham paletós furtados ou apanhado sem lata de lixo, paletós que utilizavam como sobretudo. O Professor tinha mesmo um sobretudo, de tão grande arrastava no chão [...].