domingo, 25 de maio de 2014

Me dê sua mão, hoje não voltaremos para casa



Me dê sua mão, hoje não voltaremos para casa...


Hoje iremos a todos os lugares que gostaríamos de ir juntos.

Hoje iremos sair sem destino, atravessar o mundo e voltar num só dia.

Hoje te levarei para jantar em restaurantes sofisticados e barracas de cachorro-quente.

Hoje te derrubarei nas areias de todas as praias porque seu sorriso depois de ficar brava é o mais bonito.

Hoje encontraremos pessoas que falam idiomas que não entendemos e juntos seguraremos nossas risadas.

Hoje vou caminhar ao seu lado em todas as calçadas para que o mundo nos veja.

Hoje vou sentar com você em todas as praças e observar seu rosto enquanto você está distraída com as crianças brincando.

Hoje vou te fazer correr para chegarmos a tempo dos filmes que veremos.

Hoje vou te carregar de surpresa e te jogar dentro do rio, mas pularei logo atrás para receber minha bronca e meus beijos.

Hoje vou te segurar antes de atravessarmos a rua, pois sei que você nunca espera a hora certa.

Hoje vou te contar o pouco que sei de cada lugar e ouvirei o muito que você sabe.

Hoje te comprarei café preto porque é o seu favorito, mesmo que faça careta enquanto toma.

Hoje beberemos uma garrafa de vinho antes de dormirmos sob a lua de cada lugar.

Hoje faremos amor sob o teto de cada país.

Hoje acordarei antes de você porque minha realidade ao seu lado é melhor do que todos os sonhos.

Hoje vamos ficar onde estivermos.

Hoje vamos ficar em todos os lugares.

Hoje não ficaremos em lugar algum.



Me dê sua mão, hoje não voltaremos para casa...

domingo, 26 de janeiro de 2014

Boneca Russa


Os olhos abriram-se quando uma claridade fraca tocou suavemente o seu rosto. E ali ela ficou por mais alguns segundos, minutos, décadas. Sua mente vagava de uma forma tão cosmicamente solitária e obscura que o tempo interno nunca mais se alinhara com o externo. Não sentia-se no espaço em que estava, não sentia-se deslocar uma massa de ar com o seu corpo, fundia-se, evaporava-se, transformava-se em pensamento puro, seco, nunca dantes lapidado. Sentia tudo, mas não entendia o que sentia, vivia em uma constante implosão da alma. Uma alma que jazia quebrada dentro dela e nada podia fazer. Como consertar-se quando é a sua parte mais interna que está quebrada?

Sentou-se na beirada da cama, jogou os cobertores para o lado e revelou um corpo nu, perláceo, suave, delicado. Ela se levantou e abriu a janela, que rangia com o bater da neve contra seu vitral azul celeste, deixando o frio cortá-la por fora. Os flocos de neve chocavam-se contra seu peito, pescoço e rosto, e dali eles roubavam o que lhe restava de calor e deslizavam num rastro de água, desenhando na superfície da sua pele um emaranhado de veias externas, frias e transparentes. Aquilo fazia com que sentisse que estava ali, que estava presente e que aquela era sua realidade. Aquilo pausava seus pensamentos e a acariciava de uma forma fúnebre. Seria essa a sensação de uma morte eminente? Se fosse, era o mais próximo de sentir a vida que ela conseguia chegar. 

Caminhou em direção ao banheiro, sentindo os pés esfriarem até que já não mais os sentia. Assim, flutuava sem preocupar-se em cair, pois nada sentiria com a queda. O frio que inicialmente a trazia a sensação de vida, era o mesmo que tirava o que lhe restava de sensibilidade. Em frente ao espelho não mais se reconhecia. Via um rosto que perdera todos os traços que já tivera, um cabelo vermelho escorria pela testa como sangue, olhos que tentavam imaginar uma nova realidade no reflexo a sua frente. Estava quebrando por fora também. O que a estava destruindo por dentro queria sair e conseguiria, pois suas forças desfaziam-se ao menor contato com o real. O pior de tudo era sentir cada rachadura e trincado internos aumentando até que mais uma camada virasse pó. E sentia. Sentia-se quebrar, mas o conserto não estava ao seu alcance, se é que alguém pudesse alcançá-lo. Encostou-se na parede fria e deslizou as costas até se sentar. Ali, abraçou as pernas na tentativa de se sentir, de se limitar e não mais fundir-se com o seu redor. Não funcionava mais.

Queria chorar, mas nem isso mais lhe obedecia. O choro vinha quando ele mesmo queria e quando ela não o esperava. Aliás, ela sempre o esperava. Suas lágrimas, suas companheiras, traziam mensagens de que tudo estava errado lá dentro. Lágrimas que brotavam das rachaduras e percorriam o seu caminho até encontrar a luz e beijar sua face. Mais uma vez perdia a noção do tempo externo e por horas ficou ali sentada e esqueceu-se da sua linha de pensamentos. Apenas percebeu o próprio cansado e rastejou-se nua até à cama novamente.

Não vivia mais. Não sabia em que estágio estava, mas era algo entre a vida e a morte. Sentia isso. Desejava saber como chegar a algo concreto. Seria a morte tão concreta quanto a vida? Não importava, a questão era que não suportava mais a instabilidade em que se afogava. Seus pulmões aspiravam incertezas, sua mente era um vácuo, seu corpo desistia. Tudo nela estava simplesmente cansado. Estava cansada. Não suportava ser o que era, não suportava estar onde estava. Os olhos pesavam e sua lógica esvaía-se com o passar dos segundos, até que adormecera. Os sonhos eram o único refúgio da sua insensatez atual, pois neles a lógica não elabora suas jogadas e o imaginário e inexplicável simplesmente existem em paz. Estava em paz em seus sonhos.

Os flocos de neve chocavam-se contra seu peito, pescoço e rosto, e dali eles roubavam o que lhe restava de calor e deslizavam num rastro de água, desenhando na superfície da sua pele um emaranhado de veias externas, frias e transparentes.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Dum vita est, spes est



O antigo ventilador tentando fazer seu trabalho, mas inutilmente. A sala era abafada, principalmente no fim da tarde. E principalmente no fim da tarde de uma sexta-feira, quando ele já ficava ansioso para largar o serviço e descansar. Estava sentado atrás de sua mesa de metal com pés enferrujados, coberta de folhas de rascunho, receituários, prontuários e cartilhas de saúde. Atrás havia uma parede amarela mal pintada, com alguns cartazes sobre doenças comuns no verão. A sala estava vazia, exceto por ele, obviamente, que acabara de dispensar o penúltimo paciente e fazia suas anotações finais do caso. Ainda tentava se adaptar ao clima e a rotina do lugar, pois era novo na cidade e o mais assustador, novo na profissão. Depois de vários pacientes incrédulos com o novo médico, estava acabando o serviço do dia. 

Mas ainda havia mais um paciente...

Levantou e foi até a porta do consultório, abriu, olhou para a sala de espera e chamou:

- Sr. Antônio!

Um senhor levantou mais que depressa como se levasse um susto por fazer algo errado, deixando o programa de tv de lado e pegando seu boné e sacola na cadeira ao lado, de uma forma meio atrapalhada. Sr. Antônio, um homem de mais idade, com a pele sofrida pelo tempo e pelo sol, muitos cabelos brancos e muitos espaços na cabeça sem cabelo, mas que ele fazia questão de proteger com seu boné de propaganda de posto de gasolina. Vestia uma camisa social, com as marcas de onde mais suava, e muito bem passada, exceto pelas costas que sofreram com o calor na sala de espera. Uma calça jeans velha e um sapato marrom compunham sua aparência. O rosto passava um ar de experiência que duelava com um ar de trapalhão e inocência.

Sr. Antônio se aproximou da porta e o médico lhe estendeu a mão, cumprimentando-o. A sacola quase caiu no chão, por ter se confundido perante o ato. O médico abriu mais a porta para que o homem entrasse no consultório, fechando-a logo em seguir.

- Sente-se Sr. Antônio. Pode ficar à vontade.

- Brigado. Posso colocá aqui? – perguntou deixando a sacola e o boné sobre a mesa.

- Pode sim, sem problemas.

Observou enquanto ele colocava suas coisas sobre a mesa, e perguntou:

- Tá tudo bem com o senhor?

- Eu tô bem dotôr, e ocê?

- Eu...? – o médico se atrapalhou, mas acabou dando um sorriso tranquilo – Eu tô bem também! Como que eu posso te ajudar, Sr. Antônio?

- Intão... Minha muié sempre me mandava eu vir aqui pra consulta. Mais pra te falar sincero, eu não gosto de médico não, dotôr. O sinhôr me discurpe, não é nada contra ocê não.

- Tudo bem, eu entendo. Muitas pessoas não gostam de vir ao médico mesmo não. E o que que te fez vir aqui hoje?

- Intão, de uns tempo pra cá eu acho que tem um trem errado no meu coração, sabe?! Tá isquisito.

- Esquisito, como? Batendo muito forte, muito rápido, doendo?

- É não. É tipo grande, apertando as coisa aqui im dentro. Aí me vem uma sensação ruim que eu choro. Aperta inté a garganta, sabe como é?!

- Isso começou tem quanto tempo, Sr. Antônio?

- Ahh, já tem mais de mês. Quer ver! A gente tá im outubro. Ah, mas foi antes. Lá pra antes do feriado de setembro.

- Começou em agosto?

- Antes, deve de ser desde julho.

- Entendi.

- Mas sou ruim com os dias. Minha muiê que me falava essas coisas.

- Ela não quis vir com o senhor hoje?

- Veio não dotôr. Ela faliceu esse ano. Coração dela parou. Aí vim cá olhar o meu, né dotôr?! – deu uma risada baixa e vazia.

O ventilador já não vencia o ar quente e agora não tinha chance alguma com aquele ar denso que preencheu a sala. 

- Ah, me desculpe. Então hoje a gente vai dar uma olhada nesse coração pra ver se tá tudo certo. 

- Tá bão!

- Deixa eu te perguntar – disse o médico tentando continuar a consulta, mas ainda mostrando um tom e uma fisionomia empática – o senhor tá tomando alguma coisa?

- Tomo nada não. Te falei que nem gosto de médico. – deu outra risada, um pouco mais viva.

- Essa sensação que o senhor tem no coração acontece mais em que hora do dia?

- Ah, vareia, mas quando tô deitando indo durmir que vem o trem estranho, sabe?! Quando cê tá esperando o sono chega.

- Entendi, quando a gente fica pensando em muita coisa né?

- Isso!

- Sr. Antônio, essa coisa do seu coração começou depois ou antes da sua mulher falecer?

- Ah, dortô, deixa eu ver. Foi dispois purquê se fosse antes, minha muié me trazia aqui. – outra risada, mas essa foi nitidamente morrendo e se transformando numa bola na garganta do homem.

O médico percebeu que o assunto ainda era delicado de se tratar, mas não desconsiderava o que imaginava ser o “problema” do senhor sentado diante dele.

- Senhor tá sentindo isso agora?

- Tá começando a vir agora que o sinhôr falô. – a voz engasgando fracamente. – Aí, vem um aperto e um choro sobe. Descurpa.

Segundos após se desculpar os olhos pararam de resistir e soltaram as lágrimas que se acumulavam desde alguns minutos antes, mas que eram escondidas nos sorrisos do velho senhor. Antônio levou a mão ao rosto e começou a secar as lágrimas, rapidamente como se o médico fosse achar ruim do acontecido. Este, por sua vez, esperava que o senhor começasse a chorar, mas ainda assim sentia um leve desconforto e tristeza. O médico apenas pensou que em 6 anos de curso, em centenas de livros e artigos lidos, milhares de aulas assistidas, em nenhum lugar desses o ensinava a lidar com um paciente chorando na sua frente. Mas antes que pudesse tomar qualquer atitude, Antônio se levantou rapidamente, pegou suas coisas e se dirigiu à porta, dizendo:

- Dispois eu vorto. Hoje num tô bem não. – já estava abrindo a porta.

O médico levantou também, foi em direção ao senhor, colocou uma mão no seu ombro e disse:

- Calma. Pode chorar. Vai te fazer bem, mas senta aqui pra gente conversar mais um pouco.

- Hoje não dortô. Cê mi descurpa. Mas eu vou imbora. Depois eu vorto, pode ser?!

- O senhor tem certeza? Vamos sentar e conversar mais. Posso tentar te ajudar.

- Pricisa hoje não. Eu vô, descurpa.

- Então me promete que o senhor vai voltar? Sei que você não gosta de médico, mas volta pra gente conversar mais. Pode vir qualquer dia que o senhor quiser, ok?!

- Vorto sim! Prometo! O sinhôr é bom, dortô. Eu vô vortar porque gostei do sinhôr. Cê inté abriu a porta pra mim. Prometo que vorto!

- Então eu vou te esperar, tudo bem?! Pode vir qualquer dia que o senhor quiser, pra gente conversar mais e olhar esse coração, tá bom?

- Tá bom sim! Pode dexá! – o choro já tinha parado, mas a iminência de um próximo era nítida.

Sr. Antônio caminhou por entre as cadeiras da sala de espera e saiu, mas antes olhou para o médico, ainda na porta o observando ir embora, e acenou para ele. Depois virou-se, colocou seu boné e saiu do posto.

O médico voltou a entrar na sala, sentou na cadeira e ficou pensando no seu último paciente do dia. Tinha certeza que ele voltaria. Acreditava nele. Agora era só esperar. Mas mesmo com todo o ocorrido, uma coisa lhe chamou a atenção naquela consulta. O Sr. Antônio perguntando se ele estava bem.

“- Eu tô bem dotôr, e ocê?”

...

segunda-feira, 22 de julho de 2013

Carne



A pele fria, úmida, acastanhada e endurecida.

Eu repousava sobre minha eterna cama de aço inoxidável, com o cheiro irritante e corrosivo de formol preenchendo minha casa. Meu rosto imobilizado já não lhes contava nada. Meus olhos muito secos e esbranquiçados para que revelassem um pouco além da carne, um resquício de história, um pedaço de vida. Mas elas estiveram ali. Memórias, amores e sofrimentos já fizeram parte do meu corpo, correram pelas minhas veias e artérias, encheram pulmões, acomodaram-se no cérebro, fundiam-se num só ser. Compunham-me. Contudo, essa história se perdeu, separou-se, deixando uma carne fria e um coração cheio de ar e formol. Tornei-me um desconhecido. Todos que me visitavam nada sabem sobre mim, nem o nome, nem de onde eu era, nem mesmo a causa da minha morte. Apenas me observavam, me analisavam, removiam-me órgãos e os colocavam de volta. Seguravam o meu coração, o mesmo que já pertenceu a alguém em algum momento e agora, sequer pertencia a mim. Fígado, baço, pâncreas também eram colocados em potes, deixando dentro um vazio que se juntava ao vazio da alma que se fora. Fora encontrar as outras que ajudaram a construir a minha. As mãos vivas dos visitantes tocam meu corpo morto, tocam o meu vazio e depois se vão, para que outros façam o mesmo. Hora após hora, dia após dia, ano após ano. Não sei dizer os nomes deles, pois nunca conversaram comigo. Conheço apenas os rostos.

Não possuo mais algo só meu, minha privacidade foi posta de lado pra que me conhecessem por inteiro, sou obrigado a ser exposto, sou literalmente dissecado e cada parte de mim é revelada. Meus visitantes, no entanto têm o direito de se cobrirem, de se esconderem por trás de roupas brancas, luvas, máscaras e óculos. Apenas ficam em pé ao meu lado, enquanto nomeiam cada pedaço de mim.

Deitado sobre a mesa de aço há um corpo e ao lado, também.

Deitado sobre a mesa de aço há uma história e ao lado, também.

Deitado sobre a mesa de aço há um passado já vivido e ao lado, um futuro.

Deitado sobre a mesa de aço está a solidão e o esquecimento e ao lado amizades e coleguismos.

Deitado sobre a mesa de aço há um “ninguém” e ao lado, um alguém.

Deitado sobre a mesa de aço está a morte e ao lado, a vida.

Deitado sobre a mesa de aço é onde sempre estarei e ao lado, vocês.

domingo, 7 de abril de 2013

Algodão-doce



Querida Ellie, 

Começo a escrita dessa carta já com os olhos úmidos, a mão tremendo mais do que o de costume e o amor que sinto por você maior do que jamais fora. 

Já se passaram 80 anos desde a primeira vez em que nos vimos. Você se lembra? Éramos duas crianças e nos encontramos no parque após a missa de domingo, enquanto nossos pais nos compravam algodão-doce. Lembro-me de cada detalhe, pois nesse dia eu experimentei, pela primeira vez, a tão sonhada sensação de parar o tempo. Enquanto tudo ao redor se transformava numa fotografia amarelada, você irradiava uma beleza sublime, majestosa, pura. Desde então você é o colorido de cada uma das minhas manhãs, aquecendo minha alma, afagando meu coração tão rabugento e fazendo do mundo um lugarzinho nosso. Minha amada Ellie, você segurou minhas mãos jovens e firmes ao colocar minha aliança e segurou essas mãos enrugadas e hesitantes ao dizer que tudo ficaria bem comigo essa manhã. Me desculpe por ter lhe assustado na noite anterior quando você precisou trazer-me ao hospital. Não esperava que as coisas acontecessem dessa maneira. Eu já estou doente há algum tempo, mas, por favor, Ellie, não brigue comigo por não ter lhe contado, simplesmente não consigo dizer algo que traga outra expressão ao seu rosto que não um sorriso. Porque você me faz sorrir nessa vida, e como! Você é quem sabe contornar a minha teimosia, usando apenas seu jeitinho doce de falar. Você é quem sabe o quanto adoro seus abraços quando saio do banho. Você é quem sabe amar esse coração que sempre foi seu. 

Desculpe-me se minha letra está ficando pior, mas não consigo controlar minhas mãos e minhas lágrimas. Me perdoe também por deixá-la sozinha pela primeira vez. Lembre-se de trancar a janela da sala porque você sempre me pedia pra levantar e conferir quando ouvia um barulho durante a noite. Lembre-se de tomar seu remédio ao acordar, o seu é a caixinha azul... e a minha é a vermelha, mas acredito que essa não precisaremos mais. Não se esqueça de fazer seus exercícios e comer direito, como o médico disse. Ah meu amor, como eu queria lhe fazer um café-da-manhã mais uma vez, pelo menos mais uma vez. E sentar-me e apenas observar você comendo, com uma carinha de sono e ainda com seu pijama. Dormir sempre foi uma de suas paixões, não é mesmo? E dormir ao seu lado sempre foi a minha. 

Obrigado por essa vida que você me deu. Agradeço à menina do parque que me deu um pedaço do seu algodão-doce 80 anos atrás. Agradeço à mulher que caminhou ao meu lado e que amei por 80 anos e continuarei amando onde quer que eu esteja. 

Meu amor por você sempre foi o maior que se pode sentir, mesmo quando o coração enfraquecia, meu amor permanecia inabalável. 


                           Minha querida Ellie, eu te amo! 



   Do seu amado, C. F.

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Amora, Amor e a Morte



A grama verde e úmida raspava sob seu pé enquanto encarava o lago a sua frente. Estava sentado ali, não sabia por quanto tempo. Nem mesmo sabia onde estava. Mas sentia-se bem, com a brisa da manhã no rosto e observando as ondulações que ele fazia na água com o outro pé. Do outro lado do lago, uma sombra o observava. Não a reconhecia e não fazia questão disso. Deitou sobre a grama e fechou os olhos, deixando os aromas e sons misturarem-se com a sua mente. Deixando toda a natureza que o cercava fazer parte dele naquele instante. Flutuava meio àquilo tudo. Aos poucos, não sentia mais o tocar do solo sob seu corpo, não havia mais cheiros no ar e não havia mais sons, exceto o de passos sobre o piso de madeira. 

Abriu os olhos. 

O quarto escurecia com o esconder do sol no horizonte. Estava deitado sobre uma cama, com lençóis cobrindo-o. Sua filha entrava pela porta carregando uma pequena bandeja de alumínio com seu lanche da tarde. Compreendeu tudo. Aquele era um de seus momentos de lucidez, cada vez mais raros. Nesses instantes tinha a consciência da sua situação, da dor que sentia por dentro e do que sua família fazia. A garota pousou o objeto na mesa de cabeceira e lhe sorriu. O homem a olhou com certo nojo daquele gesto tão falso, mas limitou-se a devolver um meio sorriso. Já havia se decidido a deixar tudo aquilo acontecer. Pegou a fatia de pão que ela o entregava e a faca sobre a bandeja. Mergulhou o objeto no pote de geleia e seguidamente o deslizou na superfície branca e rugosa do pão. Geleia de amora sempre fora sua preferida. E sabiam disso. Enquanto comia, os olhos dela o vigiavam e o apertavam no desconforto da cama. Ao terminar, novamente o sorriso falso foi dado e ela saiu levando tudo que outrora trouxera. Por dentro, ela gargalhava, imaginando que o homem não soubesse o que lhe faziam. 

Alguns minutos depois, a escuridão tomou conta de todo o quarto. Os olhos dele procuravam desesperadamente algo que conseguissem enxergar. Aos poucos, pequenos pontos luminosos surgiam num céu escuro. A noite estava bastante estrelada e quente. Ali dentro da tenda, os gritos dos homens indicava certa urgência. Todos pegavam suas armas e corriam para fora. O ataque havia começado. E o homem estava ali, em pé, agora sozinho, escutando os sons de tiros, explosões e de morte. Pegou uma espingarda e saiu cuidadosamente. A origem dos sons ganhava sua visão. Um cavalo passou em disparada na sua frente quase o jogando ao chão. Caminhou sobre grama e sangue procurando os seus companheiros. Observava cuidadosamente a sua volta, procurando por alguém que objetivasse matá-lo. A arma estava preparada para o tiro, mas ainda não havia encontrado nenhum alvo, nenhum inimigo. Uma chuva fraca começava a cair, molhando seu rosto e misturando-se com o suor do medo. Usou o braço para secar as gotas que lhe caíam nos olhos e quando voltou a enxergar, estava bem no meio do campo de batalha. Atirou no soldado que vinha em sua direção, acertando-o bem entre os olhos. Antes de conseguir preparar a arma novamente, levou uma pancada do lado da cabeça e caiu desorientado com as costas no chão. A guerra agora passava por cima dele, mas o estranho é que nada mais o tocava, como se não estivesse ali. Observava tudo de onde estava. Cavalos passando, batalhas sendo travadas, água, sangue, lama. Virou a cabeça e viu, no topo do morro, o contorno de alguém. Alguém estava sentado, esperando que tudo ali acabasse para chegar a vez dele fazer o serviço. Encarou por alguns segundos aquela sombra com contorno de uma pessoa. Mas aos poucos tudo foi perdendo a forma. As pessoas, cavalos, armas, tudo virava uma fumaça branca e se desfazia no ar. Por fim, só se via branco ou nada se via. Difícil saber. 

O sol batia diretamente sobre o seu rosto, fazendo-lhe acordar, mas o impedindo de abrir os olhos. Levantou a mão para cobrir a claridade que castigava sua retina e percebeu que, sentada ao lado da cama, estava agora sua mulher. Fumava tranquilamente como se ele nem ao menos estivesse ali. Quando percebeu que acordara, ela lhe deu o sorriso falso. O mesmo sorriso falso que passara para a filha. Não suportava mais aquilo. O que mais estavam esperando? Sabia que o estavam envenenando aos poucos, mas nunca quis saber o porquê disso. Sua família o queria morto e isso pra ele já era o suficiente para aceitar a morte que lhe davam no café da manhã. O gosto da sua geleia favorita nunca mais fora o mesmo desde o dia que começaram a matá-lo. O gosto da sua vida também não. A cada refeição perdia um pouco mais das forças e a sua razão e consciência nem sempre o pertenciam mais. Dessa vez, o lanche que sua mulher lhe oferecia tinha o gosto mais forte do que o normal. Compreendeu de imediato. Depois da última mordida, encostou a cabeça no travesseiro, viu sua amada esposa sair do cômodo e esperou. Estava feliz, por mais estranho que fosse. 

Não pareceu passar nem cinco minutos e a porta se abria mais uma vez. Não era ninguém da sua família. Era a sombra do outro lado do lago. Era a sombra que observava a guerra. E ele ficou surpreendido de ver que a sombra tinha os contornos belos e sensuais de uma mulher. Ela caminhou através do quarto, parou por alguns segundos do lado da cama, observando-o e o beijou. Não questionou o ato e quando se deu conta, ela estava por cima dele. Sua mente não conseguia acompanhar o que ia acontecendo. Participava de tudo com pequenos flashes de lucidez. Percebeu que estavam transando, mas não lembrava como tudo havia começado. Seu corpo sentia o contato do dela. Os beijos tinham um amor e uma paixão que há tempos não saboreava. Sentia tocá-la profundamente e o prazer consumia a ambos. Enroscavam-se por sobre a cama num delírio ardente. O orgasmo alcançou os dois no mesmo instante e os gemidos dançaram nos espaços vazios do lugar. 

Sua esposa abriu a porta, olhou em direção a cama e viu o que esperava ver. Voltou-se para trás, encarando os filhos e confirmou com a cabeça. Desceram para o jantar.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Te ajudarei a escrever a história que um dia você pensou em apagar



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Lucas estava na cozinha esvaziando as sacolas do supermercado, mas retirando somente o que precisaria para a noite. Odiava colocar as compras nos armários e geladeira, mas por não ter que trabalhar nesse dia, ficou encarregado com as funções de compras e afins. Trabalhava num escritório de advocacia que abrira há alguns anos com mais dois amigos da faculdade. Concordaram em dar-se folga para organizarem os seus respectivos planos de comemorações do dia. 

Estava ansioso pela noite. 

Colocou uma música pra encher o resto do apartamento e foi tomar um banho. Debaixo da água, cantava junto todas as músicas e até mesmo as que não sabia a letra. Estava feliz demais para preocupar-se com isso. Após sair do banheiro e vestir sua camisa branca e calça jeans, ouviu a porta da frente sendo aberta, com o característico som de um molho de chave batendo na madeira. Chegou à sala a tempo da porta revelar aos poucos o rosto de André. 

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Com um papel na mão, Lucas chega em casa e mostra à mãe o desenho que havia feito do novo amigo da escolinha. Ela abre um sorriso e diz: 

— Que lindo, meu filho! Qual o nome do seu amiguinho? 

— Victor! Ele mudou pra nossa cidade na semana passada. Ele também gosta de desenhar e a gente tem a mesma altura! – falava sempre sorrindo. 

— Que bonitinho. Depois chama ele pra brincar com você aqui em casa. – ria internamente de como as crianças tinham a bonita capacidade de aumentar a felicidade das pequenas coisas. 

Saiu gritando de felicidade pela ideia da mãe, apertando com força o papel. 

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— Victor, vou pegar mais uma cerveja, você quer uma? 

— Quero sim. Valeu cara! 

O salão estava lotado, casais se beijando, outros procurando por beijos, outros apenas tentando ficar em pé, mas o álcool não os deixava. Era a sua formatura de ensino médio e ali seria o lugar em que veria muitos dos seus colegas e amigos pela última vez. 

“Última vez”. Isso ficou martelando na sua cabeça por meses e martelava de forma brutal nesse dia. 

De volta ao círculo de conversa entregou a cerveja para o seu amigo, que novamente agradeceu. Bebiam enquanto relembravam cenas hilárias dos anos passados. Lucas suava frio com o turbilhão de pensamentos que o torturavam. Não conseguia parar de olhar para Victor. Todos os seus pensamentos naquele instante e naquele lugar eram sobre ele. Na maioria das vezes que temos dificuldade de falar o que estamos pensando, de exteriorizar um sentimento ou sofrimento contido, é por falta de um gatilho que dispare isso. 

“Última vez”. Esse era o seu gatilho. 

—Victor, bora ali fora. Te falar uma coisa. 

—Beleza! 

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Sentado na calçada observando as pessoas saindo da festa, mas por vezes olhava para o chão quando percebia que os olhares caíam sobre ele. Olhares de pena, de escárnio, olhares confusos. Deveria ter ido para a casa após tudo que acontecera, mas sentia-se desorientado, fraco, vulnerável. 

O sangue que escorria do seu supercílio misturava-se vagarosamente com as lágrimas que caminhavam pelo rosto. E a cada segundo que passava odiava-se mais e mais pelo que fizera. A conversa com Victor não foi nada do que esperava. Por alguns instantes, duvidava do que realmente havia acontecido, se era real ou se apenas tinha imaginado, entretanto o sangue aguado que pingava no chão trazia-lhe a veracidade dos fatos. E cada gota era um soco na sua consciência, uma facada no seu confuso espírito. 

“—Victor, eu queria te contar uma coisa, mas tenho muito medo do que você teria a dizer sobre isso. Então acho melhor eu dizer de uma vez. A gente é amigo desde criança, você sabe né?! Você sempre foi o meu melhor amigo durante todos esses anos, sempre me ajudou e me fez rir como ninguém. Só que o problema... bem não sei se é um problema, mas enfim. De uns tempos pra cá, durante nosso ensino médio, minha cabeça começou a ficar um pouco confusa e comecei a ter alguns pensamentos que eu não tinha. Comecei a sentir coisas diferentes... é... diferentes, acho – as mãos suando exageradamente. Deveria mesmo estar dizendo aquilo?! –. Eu tô gostando de você mais do que como amigo – Lucas sentiu-se leve por um instante, mas o silêncio que se seguiu foi como se o ar se transformasse em chumbo. 

— O que você tá querendo dizer, Lucas? Que conversa é essa? 

— Eu acho que te amo – começava a ver o mundo embaçado pela lâmina de lágrimas que cobria seus olhos. 

— Você tá achando que eu sou bicha?!?!? – essa frase foi o que Lucas ouviu após declarar um amor pela primeira vez. 

— Não é isso, é só... – não fazia ideia do que dizer. 

— Cala a boca Lucas! Essa conversa acabou!! Que desgraça aconteceu contigo?! Para com essa conversa de que me ama! Vou voltar pra festa! – virou-se e começou a caminhar. 

— Espera! – gritou Lucas e segurou o braço do amigo na tentativa de acalmá-lo ou finalizar a conversa. Entretanto esse gesto pode ter sido um erro. 

— Sai! – Victor virou-se e socou o rosto do amigo, assustando-se com a própria atitude. Mas não voltou para ajudá-lo. Caminhou de volta para a festa atordoado, assustado, olhando para trás várias vezes numa tentativa de confirmar se o que acontecera foi real.” 

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Os gritos enchiam a casa e a vizinhança. Enquanto isso Lucas fora mandado para o quarto e trancado enquanto seus pais “pensariam em uma solução para o problema”, como disseram. O menino ficou deitado com a cara no travesseiro, torturando-se com os próprios pensamentos, questionando se realmente havia um problema com ele, odiando-se como nunca. Acreditava fielmente ter perdido o seu melhor amigo, perdido a primeira pessoa que amou e, agora, perdido o seu lugar e carinho na família. 

Os gritos acabaram. 

Seu pai entrou no quarto com ódio derramando dos olhos. Pegou uma mala que estava encostada na parede e jogou brutalmente em cima do filho. Os dois ficaram alguns segundos encarando-se, até que seu pai disse: 

— Saia dessa casa! – virou as costas e bateu a porta. 

Ouvia sua mãe chorando, mas ela nada fez a respeito, o que refletia o posicionamento dela sobre o assunto também. 

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A mente tão perdida quanto o corpo. Vagava pelo passado, presente, futuro, ruas, becos e esquinas. Sentia-se sozinho. Ficou num quarto de hotel naquele dia e no seguinte procuraria ajuda de alguém. 

Ali, deitado olhando para o teto, refletia sobre si mesmo. Sobre todo o amor que tinha pela família e como isso não significou muito quando foi considerado “diferente”. Sabia que não havia feito nada de errado, mas sentia-se errado. Fizeram com que se sentisse assim. 

A tristeza que o fazia companhia no quarto era enorme, comprimindo cada parede e expulsando todo o ar do lugar. Pensava em morrer, pensava em suicídio, entretanto a vida que queria ter era mais forte do que a vontade de matar-se. Pelo menos era o que queria acreditar. Era o que precisava acreditar. 

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Acabara de chegar da faculdade e abriu a geladeira pra analisar o que teria para comer. Encontrou um último iogurte e alguns biscoitos na mesa. Levou para a sala para comer enquanto assistia à televisão. 

Morava há 2 anos com alguns amigos que conhecera no restaurante em que trabalhava como garçom. Eles faziam cursinho enquanto Lucas estudava em casa durante o dia e trabalhava durante a noite para pagar as próprias contas. Coincidentemente todos passaram juntos nos vestibulares dos respectivos cursos e decidiram por continuarem morando como estavam. Manteve o seu emprego, mesmo durante o curso. Nunca mais seus pais o procuraram ou ligaram ou mandaram cartas. Nada. Seguiu sua vida da maneira que conseguiu, anda com cicatrizes, mas nenhuma ferida aberta. 

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Saía do cinema rindo, com os braços sobre o ombro do seu namorado. Conheceram-se numa festa de um amigo de um amigo e lá conversaram bastante. Conectaram-se de uma forma que apenas quem já passou por isso sabe como é. A partir de então trocavam mensagens, telefonavam, saíam quando os dois tinham algum tempo livre. Lucas estava com uma ideia de criar um escritório com alguns amigos e isso o mantinha bastante ocupado. Seu namorado trabalhava numa empresa de automóveis. 

Caminharam pelo resto da noite até chegarem à porta do prédio de Lucas. Ali trocaram algumas palavras mais sentimentais, carícias e beijos. Por fim despediram-se. 

— Até mais! Chegando em casa eu te ligo. Não durma! – sorria mesmo durante a despedida. 

— Pode deixar! Até mais André! – ficou observando-o ir embora atravessando a noite e apenas quando estava subindo as escadas percebeu que estava sorrindo há algum tempo. 

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A porta terminou de abrir e os dois se abraçaram. Lucas começou a falar: 

— Comprei algumas coisas pra celebrarmos. Como foi no trabalho? Sacanagem fazer vocês trabalharem na véspera de ano novo. 

— Pois é, mas acabaram liberando mais cedo. – respondeu André, sorrindo como se o trabalho do dia não diminuísse sua felicidade para aquela noite. 

Seria a primeira virada de ano que passariam na própria casa. Há alguns meses decidiram morar juntos, assim esse ano havia sido muito especial para ambos. 

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Lucas sentou na varanda olhando para o céu ainda escuro. Dentro de alguns instantes os fogos iriam colorir a paisagem e misturar-se com as estrelas. A noite estava com um clima frio, mas agradável. Ali, sentado sozinho, ele pensou em tudo que passou até chegar onde estava. Pensou em Victor, no quarto de hotel, nos pais que nunca mais o procuraram, entretanto André dominava sua mente naquele dia. 

Os pensamentos foram interrompidos pelos gritos na rua. Era a contagem regressiva para o novo ano. O famoso clichê de um ano ainda em branco, esperando para ser preenchido com histórias. 

— André! 

— Tô indo! 

André chegou, mas não se sentou ao lado de Lucas. Preferiu abraçá-lo de lado, enquanto olhavam para a mesma direção. 

Os fogos começaram a explodir na imensidão negra do céu. André começou a dizer: 

— Feliz Ano No... – mas foi interrompido por Lucas. 

— Eu te amo. – pela segunda vez dizia essas palavras. Mas dessa vez os olhos dele não tiveram a coragem de encarar o do outro. Um traço de medo e insegurança ainda o acompanhava. 

Seguiu-se um tempo de silêncio. Questão de alguns segundos, mas que pareceram horas para Lucas. Tempo suficiente para a lâmina de lágrima surgir. 

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André o abraçou ainda mais forte, beijou-lhe e disse: 

— Eu sempre te amei.