quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Amora, Amor e a Morte



A grama verde e úmida raspava sob seu pé enquanto encarava o lago a sua frente. Estava sentado ali, não sabia por quanto tempo. Nem mesmo sabia onde estava. Mas sentia-se bem, com a brisa da manhã no rosto e observando as ondulações que ele fazia na água com o outro pé. Do outro lado do lago, uma sombra o observava. Não a reconhecia e não fazia questão disso. Deitou sobre a grama e fechou os olhos, deixando os aromas e sons misturarem-se com a sua mente. Deixando toda a natureza que o cercava fazer parte dele naquele instante. Flutuava meio àquilo tudo. Aos poucos, não sentia mais o tocar do solo sob seu corpo, não havia mais cheiros no ar e não havia mais sons, exceto o de passos sobre o piso de madeira. 

Abriu os olhos. 

O quarto escurecia com o esconder do sol no horizonte. Estava deitado sobre uma cama, com lençóis cobrindo-o. Sua filha entrava pela porta carregando uma pequena bandeja de alumínio com seu lanche da tarde. Compreendeu tudo. Aquele era um de seus momentos de lucidez, cada vez mais raros. Nesses instantes tinha a consciência da sua situação, da dor que sentia por dentro e do que sua família fazia. A garota pousou o objeto na mesa de cabeceira e lhe sorriu. O homem a olhou com certo nojo daquele gesto tão falso, mas limitou-se a devolver um meio sorriso. Já havia se decidido a deixar tudo aquilo acontecer. Pegou a fatia de pão que ela o entregava e a faca sobre a bandeja. Mergulhou o objeto no pote de geleia e seguidamente o deslizou na superfície branca e rugosa do pão. Geleia de amora sempre fora sua preferida. E sabiam disso. Enquanto comia, os olhos dela o vigiavam e o apertavam no desconforto da cama. Ao terminar, novamente o sorriso falso foi dado e ela saiu levando tudo que outrora trouxera. Por dentro, ela gargalhava, imaginando que o homem não soubesse o que lhe faziam. 

Alguns minutos depois, a escuridão tomou conta de todo o quarto. Os olhos dele procuravam desesperadamente algo que conseguissem enxergar. Aos poucos, pequenos pontos luminosos surgiam num céu escuro. A noite estava bastante estrelada e quente. Ali dentro da tenda, os gritos dos homens indicava certa urgência. Todos pegavam suas armas e corriam para fora. O ataque havia começado. E o homem estava ali, em pé, agora sozinho, escutando os sons de tiros, explosões e de morte. Pegou uma espingarda e saiu cuidadosamente. A origem dos sons ganhava sua visão. Um cavalo passou em disparada na sua frente quase o jogando ao chão. Caminhou sobre grama e sangue procurando os seus companheiros. Observava cuidadosamente a sua volta, procurando por alguém que objetivasse matá-lo. A arma estava preparada para o tiro, mas ainda não havia encontrado nenhum alvo, nenhum inimigo. Uma chuva fraca começava a cair, molhando seu rosto e misturando-se com o suor do medo. Usou o braço para secar as gotas que lhe caíam nos olhos e quando voltou a enxergar, estava bem no meio do campo de batalha. Atirou no soldado que vinha em sua direção, acertando-o bem entre os olhos. Antes de conseguir preparar a arma novamente, levou uma pancada do lado da cabeça e caiu desorientado com as costas no chão. A guerra agora passava por cima dele, mas o estranho é que nada mais o tocava, como se não estivesse ali. Observava tudo de onde estava. Cavalos passando, batalhas sendo travadas, água, sangue, lama. Virou a cabeça e viu, no topo do morro, o contorno de alguém. Alguém estava sentado, esperando que tudo ali acabasse para chegar a vez dele fazer o serviço. Encarou por alguns segundos aquela sombra com contorno de uma pessoa. Mas aos poucos tudo foi perdendo a forma. As pessoas, cavalos, armas, tudo virava uma fumaça branca e se desfazia no ar. Por fim, só se via branco ou nada se via. Difícil saber. 

O sol batia diretamente sobre o seu rosto, fazendo-lhe acordar, mas o impedindo de abrir os olhos. Levantou a mão para cobrir a claridade que castigava sua retina e percebeu que, sentada ao lado da cama, estava agora sua mulher. Fumava tranquilamente como se ele nem ao menos estivesse ali. Quando percebeu que acordara, ela lhe deu o sorriso falso. O mesmo sorriso falso que passara para a filha. Não suportava mais aquilo. O que mais estavam esperando? Sabia que o estavam envenenando aos poucos, mas nunca quis saber o porquê disso. Sua família o queria morto e isso pra ele já era o suficiente para aceitar a morte que lhe davam no café da manhã. O gosto da sua geleia favorita nunca mais fora o mesmo desde o dia que começaram a matá-lo. O gosto da sua vida também não. A cada refeição perdia um pouco mais das forças e a sua razão e consciência nem sempre o pertenciam mais. Dessa vez, o lanche que sua mulher lhe oferecia tinha o gosto mais forte do que o normal. Compreendeu de imediato. Depois da última mordida, encostou a cabeça no travesseiro, viu sua amada esposa sair do cômodo e esperou. Estava feliz, por mais estranho que fosse. 

Não pareceu passar nem cinco minutos e a porta se abria mais uma vez. Não era ninguém da sua família. Era a sombra do outro lado do lago. Era a sombra que observava a guerra. E ele ficou surpreendido de ver que a sombra tinha os contornos belos e sensuais de uma mulher. Ela caminhou através do quarto, parou por alguns segundos do lado da cama, observando-o e o beijou. Não questionou o ato e quando se deu conta, ela estava por cima dele. Sua mente não conseguia acompanhar o que ia acontecendo. Participava de tudo com pequenos flashes de lucidez. Percebeu que estavam transando, mas não lembrava como tudo havia começado. Seu corpo sentia o contato do dela. Os beijos tinham um amor e uma paixão que há tempos não saboreava. Sentia tocá-la profundamente e o prazer consumia a ambos. Enroscavam-se por sobre a cama num delírio ardente. O orgasmo alcançou os dois no mesmo instante e os gemidos dançaram nos espaços vazios do lugar. 

Sua esposa abriu a porta, olhou em direção a cama e viu o que esperava ver. Voltou-se para trás, encarando os filhos e confirmou com a cabeça. Desceram para o jantar.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Te ajudarei a escrever a história que um dia você pensou em apagar



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Lucas estava na cozinha esvaziando as sacolas do supermercado, mas retirando somente o que precisaria para a noite. Odiava colocar as compras nos armários e geladeira, mas por não ter que trabalhar nesse dia, ficou encarregado com as funções de compras e afins. Trabalhava num escritório de advocacia que abrira há alguns anos com mais dois amigos da faculdade. Concordaram em dar-se folga para organizarem os seus respectivos planos de comemorações do dia. 

Estava ansioso pela noite. 

Colocou uma música pra encher o resto do apartamento e foi tomar um banho. Debaixo da água, cantava junto todas as músicas e até mesmo as que não sabia a letra. Estava feliz demais para preocupar-se com isso. Após sair do banheiro e vestir sua camisa branca e calça jeans, ouviu a porta da frente sendo aberta, com o característico som de um molho de chave batendo na madeira. Chegou à sala a tempo da porta revelar aos poucos o rosto de André. 

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Com um papel na mão, Lucas chega em casa e mostra à mãe o desenho que havia feito do novo amigo da escolinha. Ela abre um sorriso e diz: 

— Que lindo, meu filho! Qual o nome do seu amiguinho? 

— Victor! Ele mudou pra nossa cidade na semana passada. Ele também gosta de desenhar e a gente tem a mesma altura! – falava sempre sorrindo. 

— Que bonitinho. Depois chama ele pra brincar com você aqui em casa. – ria internamente de como as crianças tinham a bonita capacidade de aumentar a felicidade das pequenas coisas. 

Saiu gritando de felicidade pela ideia da mãe, apertando com força o papel. 

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— Victor, vou pegar mais uma cerveja, você quer uma? 

— Quero sim. Valeu cara! 

O salão estava lotado, casais se beijando, outros procurando por beijos, outros apenas tentando ficar em pé, mas o álcool não os deixava. Era a sua formatura de ensino médio e ali seria o lugar em que veria muitos dos seus colegas e amigos pela última vez. 

“Última vez”. Isso ficou martelando na sua cabeça por meses e martelava de forma brutal nesse dia. 

De volta ao círculo de conversa entregou a cerveja para o seu amigo, que novamente agradeceu. Bebiam enquanto relembravam cenas hilárias dos anos passados. Lucas suava frio com o turbilhão de pensamentos que o torturavam. Não conseguia parar de olhar para Victor. Todos os seus pensamentos naquele instante e naquele lugar eram sobre ele. Na maioria das vezes que temos dificuldade de falar o que estamos pensando, de exteriorizar um sentimento ou sofrimento contido, é por falta de um gatilho que dispare isso. 

“Última vez”. Esse era o seu gatilho. 

—Victor, bora ali fora. Te falar uma coisa. 

—Beleza! 

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Sentado na calçada observando as pessoas saindo da festa, mas por vezes olhava para o chão quando percebia que os olhares caíam sobre ele. Olhares de pena, de escárnio, olhares confusos. Deveria ter ido para a casa após tudo que acontecera, mas sentia-se desorientado, fraco, vulnerável. 

O sangue que escorria do seu supercílio misturava-se vagarosamente com as lágrimas que caminhavam pelo rosto. E a cada segundo que passava odiava-se mais e mais pelo que fizera. A conversa com Victor não foi nada do que esperava. Por alguns instantes, duvidava do que realmente havia acontecido, se era real ou se apenas tinha imaginado, entretanto o sangue aguado que pingava no chão trazia-lhe a veracidade dos fatos. E cada gota era um soco na sua consciência, uma facada no seu confuso espírito. 

“—Victor, eu queria te contar uma coisa, mas tenho muito medo do que você teria a dizer sobre isso. Então acho melhor eu dizer de uma vez. A gente é amigo desde criança, você sabe né?! Você sempre foi o meu melhor amigo durante todos esses anos, sempre me ajudou e me fez rir como ninguém. Só que o problema... bem não sei se é um problema, mas enfim. De uns tempos pra cá, durante nosso ensino médio, minha cabeça começou a ficar um pouco confusa e comecei a ter alguns pensamentos que eu não tinha. Comecei a sentir coisas diferentes... é... diferentes, acho – as mãos suando exageradamente. Deveria mesmo estar dizendo aquilo?! –. Eu tô gostando de você mais do que como amigo – Lucas sentiu-se leve por um instante, mas o silêncio que se seguiu foi como se o ar se transformasse em chumbo. 

— O que você tá querendo dizer, Lucas? Que conversa é essa? 

— Eu acho que te amo – começava a ver o mundo embaçado pela lâmina de lágrimas que cobria seus olhos. 

— Você tá achando que eu sou bicha?!?!? – essa frase foi o que Lucas ouviu após declarar um amor pela primeira vez. 

— Não é isso, é só... – não fazia ideia do que dizer. 

— Cala a boca Lucas! Essa conversa acabou!! Que desgraça aconteceu contigo?! Para com essa conversa de que me ama! Vou voltar pra festa! – virou-se e começou a caminhar. 

— Espera! – gritou Lucas e segurou o braço do amigo na tentativa de acalmá-lo ou finalizar a conversa. Entretanto esse gesto pode ter sido um erro. 

— Sai! – Victor virou-se e socou o rosto do amigo, assustando-se com a própria atitude. Mas não voltou para ajudá-lo. Caminhou de volta para a festa atordoado, assustado, olhando para trás várias vezes numa tentativa de confirmar se o que acontecera foi real.” 

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Os gritos enchiam a casa e a vizinhança. Enquanto isso Lucas fora mandado para o quarto e trancado enquanto seus pais “pensariam em uma solução para o problema”, como disseram. O menino ficou deitado com a cara no travesseiro, torturando-se com os próprios pensamentos, questionando se realmente havia um problema com ele, odiando-se como nunca. Acreditava fielmente ter perdido o seu melhor amigo, perdido a primeira pessoa que amou e, agora, perdido o seu lugar e carinho na família. 

Os gritos acabaram. 

Seu pai entrou no quarto com ódio derramando dos olhos. Pegou uma mala que estava encostada na parede e jogou brutalmente em cima do filho. Os dois ficaram alguns segundos encarando-se, até que seu pai disse: 

— Saia dessa casa! – virou as costas e bateu a porta. 

Ouvia sua mãe chorando, mas ela nada fez a respeito, o que refletia o posicionamento dela sobre o assunto também. 

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A mente tão perdida quanto o corpo. Vagava pelo passado, presente, futuro, ruas, becos e esquinas. Sentia-se sozinho. Ficou num quarto de hotel naquele dia e no seguinte procuraria ajuda de alguém. 

Ali, deitado olhando para o teto, refletia sobre si mesmo. Sobre todo o amor que tinha pela família e como isso não significou muito quando foi considerado “diferente”. Sabia que não havia feito nada de errado, mas sentia-se errado. Fizeram com que se sentisse assim. 

A tristeza que o fazia companhia no quarto era enorme, comprimindo cada parede e expulsando todo o ar do lugar. Pensava em morrer, pensava em suicídio, entretanto a vida que queria ter era mais forte do que a vontade de matar-se. Pelo menos era o que queria acreditar. Era o que precisava acreditar. 

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Acabara de chegar da faculdade e abriu a geladeira pra analisar o que teria para comer. Encontrou um último iogurte e alguns biscoitos na mesa. Levou para a sala para comer enquanto assistia à televisão. 

Morava há 2 anos com alguns amigos que conhecera no restaurante em que trabalhava como garçom. Eles faziam cursinho enquanto Lucas estudava em casa durante o dia e trabalhava durante a noite para pagar as próprias contas. Coincidentemente todos passaram juntos nos vestibulares dos respectivos cursos e decidiram por continuarem morando como estavam. Manteve o seu emprego, mesmo durante o curso. Nunca mais seus pais o procuraram ou ligaram ou mandaram cartas. Nada. Seguiu sua vida da maneira que conseguiu, anda com cicatrizes, mas nenhuma ferida aberta. 

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Saía do cinema rindo, com os braços sobre o ombro do seu namorado. Conheceram-se numa festa de um amigo de um amigo e lá conversaram bastante. Conectaram-se de uma forma que apenas quem já passou por isso sabe como é. A partir de então trocavam mensagens, telefonavam, saíam quando os dois tinham algum tempo livre. Lucas estava com uma ideia de criar um escritório com alguns amigos e isso o mantinha bastante ocupado. Seu namorado trabalhava numa empresa de automóveis. 

Caminharam pelo resto da noite até chegarem à porta do prédio de Lucas. Ali trocaram algumas palavras mais sentimentais, carícias e beijos. Por fim despediram-se. 

— Até mais! Chegando em casa eu te ligo. Não durma! – sorria mesmo durante a despedida. 

— Pode deixar! Até mais André! – ficou observando-o ir embora atravessando a noite e apenas quando estava subindo as escadas percebeu que estava sorrindo há algum tempo. 

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A porta terminou de abrir e os dois se abraçaram. Lucas começou a falar: 

— Comprei algumas coisas pra celebrarmos. Como foi no trabalho? Sacanagem fazer vocês trabalharem na véspera de ano novo. 

— Pois é, mas acabaram liberando mais cedo. – respondeu André, sorrindo como se o trabalho do dia não diminuísse sua felicidade para aquela noite. 

Seria a primeira virada de ano que passariam na própria casa. Há alguns meses decidiram morar juntos, assim esse ano havia sido muito especial para ambos. 

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Lucas sentou na varanda olhando para o céu ainda escuro. Dentro de alguns instantes os fogos iriam colorir a paisagem e misturar-se com as estrelas. A noite estava com um clima frio, mas agradável. Ali, sentado sozinho, ele pensou em tudo que passou até chegar onde estava. Pensou em Victor, no quarto de hotel, nos pais que nunca mais o procuraram, entretanto André dominava sua mente naquele dia. 

Os pensamentos foram interrompidos pelos gritos na rua. Era a contagem regressiva para o novo ano. O famoso clichê de um ano ainda em branco, esperando para ser preenchido com histórias. 

— André! 

— Tô indo! 

André chegou, mas não se sentou ao lado de Lucas. Preferiu abraçá-lo de lado, enquanto olhavam para a mesma direção. 

Os fogos começaram a explodir na imensidão negra do céu. André começou a dizer: 

— Feliz Ano No... – mas foi interrompido por Lucas. 

— Eu te amo. – pela segunda vez dizia essas palavras. Mas dessa vez os olhos dele não tiveram a coragem de encarar o do outro. Um traço de medo e insegurança ainda o acompanhava. 

Seguiu-se um tempo de silêncio. Questão de alguns segundos, mas que pareceram horas para Lucas. Tempo suficiente para a lâmina de lágrima surgir. 

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André o abraçou ainda mais forte, beijou-lhe e disse: 

— Eu sempre te amei.