domingo, 24 de abril de 2011

Um dia de cada vez...

[Domingo/24 de abril - 19h00min] 

Estão todos sentados em uma sala timidamente iluminada, dispostos em um círculo de cadeiras. São os únicos móveis presentes. Todas as pessoas, exceto uma, aparentam freqüentar o lugar há um certo tempo. Conversam entre si e preenchem com sons o grande vazio do local, aguardando o evento da noite começar. O homem, que aparenta ser novo, permanece de cabeça baixa, ansioso e fechado dentro dos próprios pensamentos. Quer ir embora, mas não antes de fazer aquilo que o trouxe até ali. Precisava fazer, estava certo disso. Por vezes, erguia os olhos, observava todas aquelas pessoas e sentia-se deslocado, mas não queria estar em outro lugar, ou queria. Não tinha certeza de nada naquela noite. 

O dia anterior era o responsável por ele estar nessa sala. 


[Sábado/23 de abril – 9h00min] 

Levantou às 9 da manhã, mas acordou de verdade uns 30 minutos depois. Ao abrir os olhos sentia o corpo completamente cansado e destruído. A cama fora desarrumada durante os pesadelos e encontrava-se banhada em suor e fraqueza. O sol já ocupava metade do quarto e vinha em sua direção. Não conseguiria encarar a sua luz, mas não sabia como levantar. Tentou algumas vezes e acabou conseguindo. Estava tonto e rastejava até a cozinha. A boca extremamente seca e pálida implorava por água. Os olhos, quase que cerrados, o fazia esbarrar em tudo pelo caminho. Abriu a geladeira e começou a beber todas as garrafas que havia até encher todo o estômago, mas chegou um ponto que a sede estava saciada e continuou com os goles, como se tentasse, inutilmente, preencher outro vazio dentro do corpo. Queria vomitar. Sentou-se no chão e começou a chorar. 


[Sábado/23 de abril – 0h00min] 

Estava na calçada, longe de qualquer poste e de qualquer pessoa. Andava com as mãos no bolso e olhando para todas as direções, como se escutasse tiros de todos os lados. Entrou em um pequeno beco e tirou objetos do bolso. Uma colher, um saquinho, um isqueiro, uma garrafa e uma seringa. Combinava tudo de uma maneira tão precisa que evidenciava já ter tido experiências anteriores àquela. Colocou o conteúdo do saquinho na colher com um pouco de água, ferveu a mistura e a sugou para dentro da seringa. Fechou os olhos, não pela dor da agulha, mas para sentir-se só naquele momento, sem olhares, sem julgamentos, sem ninguém. À medida que o líquido entrava na sua corrente sanguínea, sentia algo incrível e indescritível. Era como se todos os prazeres do mundo derramassem em seu cérebro. Não estava preso ao chão, mas não flutuava. Era a calmaria e a leveza da morte unindo-se ao pulsar da vida. Alguns descreviam tal sensação como ‘um beijo de Deus’. O êxtase durou mais alguns minutos. Ele estava deitado no chão, num estado cadavérico. Arrastou-se até seu apartamento e caiu em sua cama. Dormiu. 


[Domingo/24 de abril - 19h00min] 

Um homem de terno entrou na sala. A atmosfera de sons foi diluindo até cessar por completo, sendo seguida de cumprimentos de “boa noite”. Levantou a cabeça e o viu sentando do lado oposto ao que estava. O homem de terno disse:- Vamos iniciar a reunião? 

Todos concordaram e uma mulher levantou-se. 

- Oi. Meu nome é Taís. Estou 43 dias “limpa”. Um dia de cada vez. 

Foi seguida pelos demais: 

- Oi. Meu nome é Antônio. Estou 20 dias “limpo”. Um dia de cada vez. 

- Oi. Meu nome é Rafael. Estou 137 dias “limpo”. Um dia de cada vez. 

- Oi. Meu nome é... um dia de cada vez. 

- Oi. Meu nome é...um dia de cada vez. 

O homem novo levantou-se, um pouco desconfiado, e disse: 

- Oi. Essa é a primeira vez que venho aqui, que procuro ajuda. Não estou certo de fazer isso, mas não sei mais o que fazer. Desculpem, esqueci de falar meu nome. Eu sou Gabriel e estou 1 dia “limpo”. 

Sentou-se e sussurrou apenas para si: “um dia de cada vez...”

Um comentário:

  1. Nossa! Senti uma evolução assustadora dos outros textos pra esse. Os outros, apesar de também excelentes, tinham um viés mais de crônica do que de conto. Essas classificações são bem subjetivas, mas foi o que eu senti, pelo menos. Nesse, seu estilo parece mais bem estruturado, delineado. Os períodos curtos, incisivos, que não pecam por falta de profundidade. As palavras parecem ter sido minuciosamente selecionadas e se encaixaram perfeitamente para a sensação da narrativa construir as imagens na minha mente.

    Fiquei orgulhoso! Escrita profissional!

    ResponderExcluir