quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Te ajudarei a escrever a história que um dia você pensou em apagar



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Lucas estava na cozinha esvaziando as sacolas do supermercado, mas retirando somente o que precisaria para a noite. Odiava colocar as compras nos armários e geladeira, mas por não ter que trabalhar nesse dia, ficou encarregado com as funções de compras e afins. Trabalhava num escritório de advocacia que abrira há alguns anos com mais dois amigos da faculdade. Concordaram em dar-se folga para organizarem os seus respectivos planos de comemorações do dia. 

Estava ansioso pela noite. 

Colocou uma música pra encher o resto do apartamento e foi tomar um banho. Debaixo da água, cantava junto todas as músicas e até mesmo as que não sabia a letra. Estava feliz demais para preocupar-se com isso. Após sair do banheiro e vestir sua camisa branca e calça jeans, ouviu a porta da frente sendo aberta, com o característico som de um molho de chave batendo na madeira. Chegou à sala a tempo da porta revelar aos poucos o rosto de André. 

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Com um papel na mão, Lucas chega em casa e mostra à mãe o desenho que havia feito do novo amigo da escolinha. Ela abre um sorriso e diz: 

— Que lindo, meu filho! Qual o nome do seu amiguinho? 

— Victor! Ele mudou pra nossa cidade na semana passada. Ele também gosta de desenhar e a gente tem a mesma altura! – falava sempre sorrindo. 

— Que bonitinho. Depois chama ele pra brincar com você aqui em casa. – ria internamente de como as crianças tinham a bonita capacidade de aumentar a felicidade das pequenas coisas. 

Saiu gritando de felicidade pela ideia da mãe, apertando com força o papel. 

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— Victor, vou pegar mais uma cerveja, você quer uma? 

— Quero sim. Valeu cara! 

O salão estava lotado, casais se beijando, outros procurando por beijos, outros apenas tentando ficar em pé, mas o álcool não os deixava. Era a sua formatura de ensino médio e ali seria o lugar em que veria muitos dos seus colegas e amigos pela última vez. 

“Última vez”. Isso ficou martelando na sua cabeça por meses e martelava de forma brutal nesse dia. 

De volta ao círculo de conversa entregou a cerveja para o seu amigo, que novamente agradeceu. Bebiam enquanto relembravam cenas hilárias dos anos passados. Lucas suava frio com o turbilhão de pensamentos que o torturavam. Não conseguia parar de olhar para Victor. Todos os seus pensamentos naquele instante e naquele lugar eram sobre ele. Na maioria das vezes que temos dificuldade de falar o que estamos pensando, de exteriorizar um sentimento ou sofrimento contido, é por falta de um gatilho que dispare isso. 

“Última vez”. Esse era o seu gatilho. 

—Victor, bora ali fora. Te falar uma coisa. 

—Beleza! 

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Sentado na calçada observando as pessoas saindo da festa, mas por vezes olhava para o chão quando percebia que os olhares caíam sobre ele. Olhares de pena, de escárnio, olhares confusos. Deveria ter ido para a casa após tudo que acontecera, mas sentia-se desorientado, fraco, vulnerável. 

O sangue que escorria do seu supercílio misturava-se vagarosamente com as lágrimas que caminhavam pelo rosto. E a cada segundo que passava odiava-se mais e mais pelo que fizera. A conversa com Victor não foi nada do que esperava. Por alguns instantes, duvidava do que realmente havia acontecido, se era real ou se apenas tinha imaginado, entretanto o sangue aguado que pingava no chão trazia-lhe a veracidade dos fatos. E cada gota era um soco na sua consciência, uma facada no seu confuso espírito. 

“—Victor, eu queria te contar uma coisa, mas tenho muito medo do que você teria a dizer sobre isso. Então acho melhor eu dizer de uma vez. A gente é amigo desde criança, você sabe né?! Você sempre foi o meu melhor amigo durante todos esses anos, sempre me ajudou e me fez rir como ninguém. Só que o problema... bem não sei se é um problema, mas enfim. De uns tempos pra cá, durante nosso ensino médio, minha cabeça começou a ficar um pouco confusa e comecei a ter alguns pensamentos que eu não tinha. Comecei a sentir coisas diferentes... é... diferentes, acho – as mãos suando exageradamente. Deveria mesmo estar dizendo aquilo?! –. Eu tô gostando de você mais do que como amigo – Lucas sentiu-se leve por um instante, mas o silêncio que se seguiu foi como se o ar se transformasse em chumbo. 

— O que você tá querendo dizer, Lucas? Que conversa é essa? 

— Eu acho que te amo – começava a ver o mundo embaçado pela lâmina de lágrimas que cobria seus olhos. 

— Você tá achando que eu sou bicha?!?!? – essa frase foi o que Lucas ouviu após declarar um amor pela primeira vez. 

— Não é isso, é só... – não fazia ideia do que dizer. 

— Cala a boca Lucas! Essa conversa acabou!! Que desgraça aconteceu contigo?! Para com essa conversa de que me ama! Vou voltar pra festa! – virou-se e começou a caminhar. 

— Espera! – gritou Lucas e segurou o braço do amigo na tentativa de acalmá-lo ou finalizar a conversa. Entretanto esse gesto pode ter sido um erro. 

— Sai! – Victor virou-se e socou o rosto do amigo, assustando-se com a própria atitude. Mas não voltou para ajudá-lo. Caminhou de volta para a festa atordoado, assustado, olhando para trás várias vezes numa tentativa de confirmar se o que acontecera foi real.” 

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Os gritos enchiam a casa e a vizinhança. Enquanto isso Lucas fora mandado para o quarto e trancado enquanto seus pais “pensariam em uma solução para o problema”, como disseram. O menino ficou deitado com a cara no travesseiro, torturando-se com os próprios pensamentos, questionando se realmente havia um problema com ele, odiando-se como nunca. Acreditava fielmente ter perdido o seu melhor amigo, perdido a primeira pessoa que amou e, agora, perdido o seu lugar e carinho na família. 

Os gritos acabaram. 

Seu pai entrou no quarto com ódio derramando dos olhos. Pegou uma mala que estava encostada na parede e jogou brutalmente em cima do filho. Os dois ficaram alguns segundos encarando-se, até que seu pai disse: 

— Saia dessa casa! – virou as costas e bateu a porta. 

Ouvia sua mãe chorando, mas ela nada fez a respeito, o que refletia o posicionamento dela sobre o assunto também. 

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A mente tão perdida quanto o corpo. Vagava pelo passado, presente, futuro, ruas, becos e esquinas. Sentia-se sozinho. Ficou num quarto de hotel naquele dia e no seguinte procuraria ajuda de alguém. 

Ali, deitado olhando para o teto, refletia sobre si mesmo. Sobre todo o amor que tinha pela família e como isso não significou muito quando foi considerado “diferente”. Sabia que não havia feito nada de errado, mas sentia-se errado. Fizeram com que se sentisse assim. 

A tristeza que o fazia companhia no quarto era enorme, comprimindo cada parede e expulsando todo o ar do lugar. Pensava em morrer, pensava em suicídio, entretanto a vida que queria ter era mais forte do que a vontade de matar-se. Pelo menos era o que queria acreditar. Era o que precisava acreditar. 

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Acabara de chegar da faculdade e abriu a geladeira pra analisar o que teria para comer. Encontrou um último iogurte e alguns biscoitos na mesa. Levou para a sala para comer enquanto assistia à televisão. 

Morava há 2 anos com alguns amigos que conhecera no restaurante em que trabalhava como garçom. Eles faziam cursinho enquanto Lucas estudava em casa durante o dia e trabalhava durante a noite para pagar as próprias contas. Coincidentemente todos passaram juntos nos vestibulares dos respectivos cursos e decidiram por continuarem morando como estavam. Manteve o seu emprego, mesmo durante o curso. Nunca mais seus pais o procuraram ou ligaram ou mandaram cartas. Nada. Seguiu sua vida da maneira que conseguiu, anda com cicatrizes, mas nenhuma ferida aberta. 

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Saía do cinema rindo, com os braços sobre o ombro do seu namorado. Conheceram-se numa festa de um amigo de um amigo e lá conversaram bastante. Conectaram-se de uma forma que apenas quem já passou por isso sabe como é. A partir de então trocavam mensagens, telefonavam, saíam quando os dois tinham algum tempo livre. Lucas estava com uma ideia de criar um escritório com alguns amigos e isso o mantinha bastante ocupado. Seu namorado trabalhava numa empresa de automóveis. 

Caminharam pelo resto da noite até chegarem à porta do prédio de Lucas. Ali trocaram algumas palavras mais sentimentais, carícias e beijos. Por fim despediram-se. 

— Até mais! Chegando em casa eu te ligo. Não durma! – sorria mesmo durante a despedida. 

— Pode deixar! Até mais André! – ficou observando-o ir embora atravessando a noite e apenas quando estava subindo as escadas percebeu que estava sorrindo há algum tempo. 

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A porta terminou de abrir e os dois se abraçaram. Lucas começou a falar: 

— Comprei algumas coisas pra celebrarmos. Como foi no trabalho? Sacanagem fazer vocês trabalharem na véspera de ano novo. 

— Pois é, mas acabaram liberando mais cedo. – respondeu André, sorrindo como se o trabalho do dia não diminuísse sua felicidade para aquela noite. 

Seria a primeira virada de ano que passariam na própria casa. Há alguns meses decidiram morar juntos, assim esse ano havia sido muito especial para ambos. 

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Lucas sentou na varanda olhando para o céu ainda escuro. Dentro de alguns instantes os fogos iriam colorir a paisagem e misturar-se com as estrelas. A noite estava com um clima frio, mas agradável. Ali, sentado sozinho, ele pensou em tudo que passou até chegar onde estava. Pensou em Victor, no quarto de hotel, nos pais que nunca mais o procuraram, entretanto André dominava sua mente naquele dia. 

Os pensamentos foram interrompidos pelos gritos na rua. Era a contagem regressiva para o novo ano. O famoso clichê de um ano ainda em branco, esperando para ser preenchido com histórias. 

— André! 

— Tô indo! 

André chegou, mas não se sentou ao lado de Lucas. Preferiu abraçá-lo de lado, enquanto olhavam para a mesma direção. 

Os fogos começaram a explodir na imensidão negra do céu. André começou a dizer: 

— Feliz Ano No... – mas foi interrompido por Lucas. 

— Eu te amo. – pela segunda vez dizia essas palavras. Mas dessa vez os olhos dele não tiveram a coragem de encarar o do outro. Um traço de medo e insegurança ainda o acompanhava. 

Seguiu-se um tempo de silêncio. Questão de alguns segundos, mas que pareceram horas para Lucas. Tempo suficiente para a lâmina de lágrima surgir. 

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André o abraçou ainda mais forte, beijou-lhe e disse: 

— Eu sempre te amei.

3 comentários:

  1. Texto muito sensível, bem escrito, singelo. Incrível! Meus parabéns!

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  2. Parabens Rony! Texto excelente, uma tematica bastante polemica, realmente inacreditavel seus textos.

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  3. Me aventuro mais uma vez por espaços que contém pessoas tão diversas a mim. E confesso que adoro esses momentos e os percebo como instantes dotados de uma riqueza sem igual. São nesses instantes que eu saio da minha conformação diária em razão de tanta diversidade e aprendo muito. e também vejo, infelizmente o quanto o preconceito, mesmo que velado, impede a felicidade de tanta gente.

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