sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Dum vita est, spes est



O antigo ventilador tentando fazer seu trabalho, mas inutilmente. A sala era abafada, principalmente no fim da tarde. E principalmente no fim da tarde de uma sexta-feira, quando ele já ficava ansioso para largar o serviço e descansar. Estava sentado atrás de sua mesa de metal com pés enferrujados, coberta de folhas de rascunho, receituários, prontuários e cartilhas de saúde. Atrás havia uma parede amarela mal pintada, com alguns cartazes sobre doenças comuns no verão. A sala estava vazia, exceto por ele, obviamente, que acabara de dispensar o penúltimo paciente e fazia suas anotações finais do caso. Ainda tentava se adaptar ao clima e a rotina do lugar, pois era novo na cidade e o mais assustador, novo na profissão. Depois de vários pacientes incrédulos com o novo médico, estava acabando o serviço do dia. 

Mas ainda havia mais um paciente...

Levantou e foi até a porta do consultório, abriu, olhou para a sala de espera e chamou:

- Sr. Antônio!

Um senhor levantou mais que depressa como se levasse um susto por fazer algo errado, deixando o programa de tv de lado e pegando seu boné e sacola na cadeira ao lado, de uma forma meio atrapalhada. Sr. Antônio, um homem de mais idade, com a pele sofrida pelo tempo e pelo sol, muitos cabelos brancos e muitos espaços na cabeça sem cabelo, mas que ele fazia questão de proteger com seu boné de propaganda de posto de gasolina. Vestia uma camisa social, com as marcas de onde mais suava, e muito bem passada, exceto pelas costas que sofreram com o calor na sala de espera. Uma calça jeans velha e um sapato marrom compunham sua aparência. O rosto passava um ar de experiência que duelava com um ar de trapalhão e inocência.

Sr. Antônio se aproximou da porta e o médico lhe estendeu a mão, cumprimentando-o. A sacola quase caiu no chão, por ter se confundido perante o ato. O médico abriu mais a porta para que o homem entrasse no consultório, fechando-a logo em seguir.

- Sente-se Sr. Antônio. Pode ficar à vontade.

- Brigado. Posso colocá aqui? – perguntou deixando a sacola e o boné sobre a mesa.

- Pode sim, sem problemas.

Observou enquanto ele colocava suas coisas sobre a mesa, e perguntou:

- Tá tudo bem com o senhor?

- Eu tô bem dotôr, e ocê?

- Eu...? – o médico se atrapalhou, mas acabou dando um sorriso tranquilo – Eu tô bem também! Como que eu posso te ajudar, Sr. Antônio?

- Intão... Minha muié sempre me mandava eu vir aqui pra consulta. Mais pra te falar sincero, eu não gosto de médico não, dotôr. O sinhôr me discurpe, não é nada contra ocê não.

- Tudo bem, eu entendo. Muitas pessoas não gostam de vir ao médico mesmo não. E o que que te fez vir aqui hoje?

- Intão, de uns tempo pra cá eu acho que tem um trem errado no meu coração, sabe?! Tá isquisito.

- Esquisito, como? Batendo muito forte, muito rápido, doendo?

- É não. É tipo grande, apertando as coisa aqui im dentro. Aí me vem uma sensação ruim que eu choro. Aperta inté a garganta, sabe como é?!

- Isso começou tem quanto tempo, Sr. Antônio?

- Ahh, já tem mais de mês. Quer ver! A gente tá im outubro. Ah, mas foi antes. Lá pra antes do feriado de setembro.

- Começou em agosto?

- Antes, deve de ser desde julho.

- Entendi.

- Mas sou ruim com os dias. Minha muiê que me falava essas coisas.

- Ela não quis vir com o senhor hoje?

- Veio não dotôr. Ela faliceu esse ano. Coração dela parou. Aí vim cá olhar o meu, né dotôr?! – deu uma risada baixa e vazia.

O ventilador já não vencia o ar quente e agora não tinha chance alguma com aquele ar denso que preencheu a sala. 

- Ah, me desculpe. Então hoje a gente vai dar uma olhada nesse coração pra ver se tá tudo certo. 

- Tá bão!

- Deixa eu te perguntar – disse o médico tentando continuar a consulta, mas ainda mostrando um tom e uma fisionomia empática – o senhor tá tomando alguma coisa?

- Tomo nada não. Te falei que nem gosto de médico. – deu outra risada, um pouco mais viva.

- Essa sensação que o senhor tem no coração acontece mais em que hora do dia?

- Ah, vareia, mas quando tô deitando indo durmir que vem o trem estranho, sabe?! Quando cê tá esperando o sono chega.

- Entendi, quando a gente fica pensando em muita coisa né?

- Isso!

- Sr. Antônio, essa coisa do seu coração começou depois ou antes da sua mulher falecer?

- Ah, dortô, deixa eu ver. Foi dispois purquê se fosse antes, minha muié me trazia aqui. – outra risada, mas essa foi nitidamente morrendo e se transformando numa bola na garganta do homem.

O médico percebeu que o assunto ainda era delicado de se tratar, mas não desconsiderava o que imaginava ser o “problema” do senhor sentado diante dele.

- Senhor tá sentindo isso agora?

- Tá começando a vir agora que o sinhôr falô. – a voz engasgando fracamente. – Aí, vem um aperto e um choro sobe. Descurpa.

Segundos após se desculpar os olhos pararam de resistir e soltaram as lágrimas que se acumulavam desde alguns minutos antes, mas que eram escondidas nos sorrisos do velho senhor. Antônio levou a mão ao rosto e começou a secar as lágrimas, rapidamente como se o médico fosse achar ruim do acontecido. Este, por sua vez, esperava que o senhor começasse a chorar, mas ainda assim sentia um leve desconforto e tristeza. O médico apenas pensou que em 6 anos de curso, em centenas de livros e artigos lidos, milhares de aulas assistidas, em nenhum lugar desses o ensinava a lidar com um paciente chorando na sua frente. Mas antes que pudesse tomar qualquer atitude, Antônio se levantou rapidamente, pegou suas coisas e se dirigiu à porta, dizendo:

- Dispois eu vorto. Hoje num tô bem não. – já estava abrindo a porta.

O médico levantou também, foi em direção ao senhor, colocou uma mão no seu ombro e disse:

- Calma. Pode chorar. Vai te fazer bem, mas senta aqui pra gente conversar mais um pouco.

- Hoje não dortô. Cê mi descurpa. Mas eu vou imbora. Depois eu vorto, pode ser?!

- O senhor tem certeza? Vamos sentar e conversar mais. Posso tentar te ajudar.

- Pricisa hoje não. Eu vô, descurpa.

- Então me promete que o senhor vai voltar? Sei que você não gosta de médico, mas volta pra gente conversar mais. Pode vir qualquer dia que o senhor quiser, ok?!

- Vorto sim! Prometo! O sinhôr é bom, dortô. Eu vô vortar porque gostei do sinhôr. Cê inté abriu a porta pra mim. Prometo que vorto!

- Então eu vou te esperar, tudo bem?! Pode vir qualquer dia que o senhor quiser, pra gente conversar mais e olhar esse coração, tá bom?

- Tá bom sim! Pode dexá! – o choro já tinha parado, mas a iminência de um próximo era nítida.

Sr. Antônio caminhou por entre as cadeiras da sala de espera e saiu, mas antes olhou para o médico, ainda na porta o observando ir embora, e acenou para ele. Depois virou-se, colocou seu boné e saiu do posto.

O médico voltou a entrar na sala, sentou na cadeira e ficou pensando no seu último paciente do dia. Tinha certeza que ele voltaria. Acreditava nele. Agora era só esperar. Mas mesmo com todo o ocorrido, uma coisa lhe chamou a atenção naquela consulta. O Sr. Antônio perguntando se ele estava bem.

“- Eu tô bem dotôr, e ocê?”

...

Um comentário:

  1. Ótimo! Vontade de saber do retorno desse paciente. Invista nessa história, a relação desses dois pode ser bem construída. Parabéns pelo texto, abraços!

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